Manipulação Vergonhosa

 

Faz-se necessário refutar com veemência toda e qualquer tipo de manipulação política em relação a temáticas religiosas. A repercussão de tais questões interessa diretamente a uma das campanhas que disputa a presidência da república do nosso país. A tática consiste, principalmente, em espalhar inúmeros boatos pela internet de forma anônima atribuindo à concorrente, frases e opiniões de impacto eleitoral negativo. Infelizmente tais ações têm sido reproduzidas por pessoas que se dizem cristãs católicas, mas que se prestam, na verdade a um movimento de manipulação e mentira de profunda gravidade. Eu mesmo recebi, em meu endereço eletrônico, inúmeros desses e-mails enviados por pessoas que eu tinha na conta de cidadãos conscientes e críticos, enganei-me.
A quem interessa esse movimento? Quais as reais intenções? Estariam os seus autores verdadeiramente comprometidos com os valores éticos e morais do cristianismo? Seriam eles defensores do projeto de Jesus? Somente os tolos acreditam nisso. É óbvio que o único interesse desses desonestos é confundir a opinião dos eleitores cristãos e com isso fazê-los mudar o voto em favor deles. Vamos ao tema mais abordado nessa manipulação ridícula.

Aborto
É óbvio que todos os verdadeiros cristãos são contra o aborto, o pior de todos os atentados contra a vida humana. O problema é que, infelizmente, nem todos os cidadãos brasileiros são cristãos, muito menos cristãos católicos. Por causa disso, muitos dos direitos dos cidadãos que estão na Constituição Federal do nosso país vão de encontro aos valores do cristianismo. Por exemplo, nela já está assegurado o direito ao aborto às mulheres que tenham sido vítimas de estupro ou cuja gravidez represente uma grave e explícita ameaça à sua própria vida. Nesses dois casos o aborto já é garantido por lei no Brasil, mesmo que isso contrarie profundamente a moral católica. O Estado, portanto, é obrigado pela sua Constituição a garantir assistência às mulheres que, segundo os critérios acima referidos, queiram praticar o aborto. Inclusive, foi o próprio candidato que hoje acusa a concorrência de defender o aborto quem regulamentou através de uma portaria por ele assinada quando foi ministro de Estado, a política de saúde pública para o aborto no Brasil.
Um segundo ponto importante nessa discussão, é que a constituição também obriga o Estado Brasileiro a dar assistência gratuita e irrestrita àquelas mulheres que tendo praticado abortos ilegais tenham sofrido graves sequelas e que careçam de atendimento médico especializado, garantindo inclusive sigilo no atendimento clínico hospitalar.
Um terceiro ponto: o número de abortos voluntários e ilegais praticados no Brasil por ano ultrapassa a cifra de um milhão; as consequências disso não são somente de ordem moral, mas um grave problema de saúde pública, pois, muitas vezes as mães também morrem ao tentarem tirar seus filhos (bem feito?). O que se pode e se deve fazer para combater essa realidade? Condenar o aborto nas igrejas, somente, resolve?  É preciso uma política pública que seja capaz de formar os adolescentes e jovens para que não venham a engravidar sem que desejem e tenham estrutura mínima para tal, e assim não seja preciso de forma irresponsável e desumana lançar mão do aborto como forma de corrigir uma irresponsabilidade. A igreja tem uma proposta baseada no Evangelho e traduzida em sua doutrina  moral. A pergunta é: Essa proposta tem sido acolhida por toda a população brasileira? Se formos honestos e realistas a conclusão é simples: não! O que significa? Que a Igreja deve abrir mão de apresentar e defender essa proposta? Também não! O problema é que o Estado não pode esperar que toda a população um belo dia (se é que isso vai acontecer)  se converta verdadeiramente ao cristianismo e passe a seguir todas as suas orientações. O Estado então, que não é teocrático, mas democrático, encontra os seus próprios caminhos para enfrentar os desafios que atinge a nação. A Igreja com sua missão profética tenta conscientizar e influenciar os cidadãos que tem sobre o Estado uma responsabilidade legislativa, mas quase sempre frustra-se. Essa é a realidade. 
Um quarto ponto importante, todas as propostas de mudanças na Constituição Federal  necessariamente devem ser submetidas à apreciação do Congresso Nacional. Portanto, nenhum presidente pode, a seu bel prazer,  mudar a Constituição, mesmo que desejasse.
Apesar de a população brasileira ser de esmagadora maioria cristã, não conseguiu evitar, por exemplo, que fosse aprovado pelo Congresso Nacional, que representa a população, o direito ao aborto nos casos acima citados, mesmo com o protesto, à época, das igrejas cristãs. Portanto, algumas dessas discussões são de uma hipocrisia sem medida.
Em 2005, por exemplo, fez-se no Brasil um plebiscito para se decidir sobre a proibição ou não da venda de armas de fogo. A igreja católica e várias igrejas evangélicas fizeram campanha explícita pela proibição da venda de armas de fogo. A imensa maioria dos católicos votou a favor da venda de armas de fogo. Outro exemplo, a Igreja condena o uso de métodos anticoncepcionais. A esmagadora maioria dos casais católicos faz uso de tais métodos. Em 2007, sob encomenda da revista Carta Capital, o instituto Vox Populi fez uma pesquisa e constatou que 76% da população defende o aborto em caso de risco de vida para a mãe, e 70% defende tal prática em caso de estupro. Seria possível dizer que entre esses 76% e 70% que defenderam o aborto não haviam cristãos católicos?
Ou seja, ou os católicos não acolhem muitos dos ensinamentos e orientações da igreja, ou são semelhantes aos fariseus hipócritas que não viviam nada do que pregavam, mas ficavam escandalizados quando Jesus e seus discípulos contrariavam qualquer orientação da lei sagrada. Eu poderia dar muitos outros exemplos, mas acho que esses ilustram bem a esquizofrenia entre fé e vida na prática dos que se dizem cristãos.
O que quero com tudo isso? Para muitos pode parecer chocante e inadequado esse meu comentário nesse programa que deveria ser caracterizado por suas temáticas religiosas. Mas, eu não poderia trair as minhas convicções éticas e cristãs, uma vez que outras lideranças religiosas muito mais importantes do que eu também têm feito uso de espaços de comunicação em todo o Brasil para endossar, por ingenuidade ou conivência, a manipulação política e eleitoreira de temáticas e princípios religiosos por parte de certos candidatos com o único e exclusivo objetivo de beneficiar-se eleitoralmente, sem que tenham de fato o menor compromisso com tais princípios. Se enveredarmos por esse caminho, estaremos jogando fora a oportunidade de verdadeiramente nos debruçar sobre os reais problemas e desafios do nosso país, que reclamam projetos e propostas concretas, e de contribuirmos com uma discussão séria e equilibrada cujo objetivo deva ser a justiça social, através da garantia dos direitos básicos a todos e cada cidadão, sobretudo os mais pobres. Se a Igreja não acordar e perceber que está sendo vergonhosamente usada como pretexto para uma manobra política eleitoreira de quinta categoria, poderá ser parcialmente, no futuro, responsabilizada pelo retrocesso político-social em nosso país.