Sagrado e os mecanismos do mercado neo-liberal


Apresentamos a seguir um artigo publicado na revista VIDA PASTORAL  (No. 212, maio/junho 2000, São Paulo, ed. Paulus), de autoria do professor Renold J. Blank. O título é bastante sugestivo "Sagrado e os mecanismos do mercado neo-liberal" e nos remete à temática da Campanha da Fraternidade deste ano (Economia e Vida). 

Boa leitura!

* PASCOM


"Sagrado e os mecanismos do mercado neo-liberal"

1. O sagrado marca a sua presença acentuada na época pós-industrial

Vivemos numa época, chamada de pós-industrial, de pós-moderna, e as vezes até se diz que esta época é "pós-cristã".

Mas, apesar de já ser denominados de "pós", são exatamente estes cristãos que recentemente começam a se manifestarem em massa. Mega-eventos religiosos demonstram a sua presença, na televisão aparecem "astros" do sagrado que fazem aumentar a patamares nunca antes observados os índices de audiência. Consequentemente, é claro, sobem também os preços, pagos pelo minuto de propaganda naquelas emissoras de televisão.

Discos com músicas religiosas figuram entre os candidatos do "disco ouro", entregue com grande pompa aos cantores respectivos. A mídia jubila e representantes de igrejas ou de denominações cristãs distintas entram em competição nas previsões sobre quem, na próxima vez, reunirá mais fieis nas ruas ou nos estádios de futebol. Tudo, para mostrar a sua força, para demonstrar a sua fé,  talvez para provar que esta fé ainda tem poder, ou simplesmente para louvar a Deus com maior potência de vozes e de alto-falantes.

São estes, alguns dos fenômenos desta nova onda do religioso dentro da mídia e da sociedade. E a grande questão é, como compreender tais fatos, quando de outro lado, assistimos ao mesmo tempo a tendências totalmente opostas. Rejeição dos valores religiosos tradicionais, mais de meia milhão de católicos que por ano, só no Brasil, deixam a sua Igreja, uma geração de jovens, para os quais, os conteúdos da fé e as exigências de sua moral não contam mais.

A primeira vista, o ambiente pós-moderno parece muito oposto à toda manifestação do sagrada. Mas, apesar disso, observamos tais manifestações numa escala crescente.

Na tentativa de achar explicações para este fenômeno, encontramos todo uma trama de mecanismos, cujo eixo nos confronto com algumas das profundas problemáticas do atual sistema neo-liberal.

O primeiro deles, é aquele que forma o centro vital deste sistema: O MERCADO.

2. Os mecanismos do mercado que marcam a época pós-moderna

A época pós-moderna é profundamente dominada pelas leis do mercado. Este mercado faz de tudo "um produto" a ser vendido.

Tudo pode ser comercializado. Tudo é bom, quando promete lucro.

Dentro desta perspectiva, também a religião nada  é do que mais um possível produto a ser comercializado. E quando promete dar lucro, vai ser comercializado.

Por causa disso, observamos fatos tão contraditórios como aqueles que podemos constatar nos atuais programas de televisão. Um dia apresentam a bunda de alguma déusa do sexo, outro dia oferecem programas religiosos, mais tarde vem o esporte ou a voz de uma cantora. Não importa o que seja, importante é que o programa haja audiência, isso quer dizer, seja comprado. Importante é que se possa vender , que se possa fazer negócios, que o consumo se aquece. E dentro da lógica do mercado neo-liberal, não há nada que não poderia tornar-se produto

3. A problemática intrínseca de um sistema, onde tudo é um potencial produto a ser vendido.

Dentro deste sistema de consumo desenfreado, porém, aparece uma falha mortal. Os milhões de produtos a serem oferecidos ao consumidor, envelhecem. Eles se tornam superados em pouco tempo. Consequentemente, devem ser substituídos por outros, novos, que por sua vez envelhecem e estão sendo descartados em favor de outros.

O mercado de produtos está desesperadamente correndo na busca de algo novo. De algo que substitui o velho. De algo que pode ser comercializado. De algo que promete satisfazer o profundo vaziu dos corações de consumidores, condicionados pela propaganda a nunca ficarem satisfeitos.

4. Para este sistema, o sagrada se oferece hoje como um "produto novo", pela qual, tem interesse no mercado.

É a partir da desenfreada busca por novos produtos a serem vendidos, que devemos compreender também o interesse crescente do mercado em oferecer artigos religiosos, eventos religiosos, programas religiosos, transmitidos por emissoras que alguns meses antes ainda investiram nos seios de um astro de streap-tease ou nos músculos de um esportista. De repente, descobriram a religião. E agora apresentam Nossa Senhora e cantores que fazem dançar as suas platéias no ritmo de celebrações religiosas. Apesar de toda satisfação que um tal fenômeno produz em todos aqueles que se identificam com os valores religiosos, não podemos nunca esquecer o mecanismo que dentro do sistema incentiva um tal interesse religioso.

É claro que a intenção dos incentivadores de tais programas, pelo menos dentro das Igrejas tradicionais, é longe de objetivos comerciais. Eles, bem pelo contrário, investem nos novos caminhos de evangelização, convencidos com toda razão que, numa época, marcada pela mídia, também a religião deve recorrer a todos estes novos meios de divulgação.

A partir do momento, porém, que entram em jogo os interesses do mercado, a possibilidade é imensa que os mecanismos deste mercado sejam mais fortes que as melhores intenções. Como resultado, observamos aquilo que Ricardo Mariano chama uma  "progressiva acomodação ... à sociedade e à cultura de consumo".[1]

Há tantos cristãos que não o percebam.

Muitos católicos querem detectar nos fenômenos da tele-evangelização em massa, um novo renascimento do espírito religioso. Um novo tipo de evangelização, um novo vigor da fé.

Talvez eles têm razão.

Mas, a probabilidade é imensa que eles, pelo menos por parte, se enganam !

Ou melhor, que estão sendo enganados !

Porque o que vem a tona em certas manifestações religiosas,  em muitos casos  é  longe da nova linha de evangelização, exigida e propagada pelo episcopado Latino-Americano em Santo Domingos. ( cf.: SD 23 - 156)

Na realidade, assistimos nestas manifestações de maneira direta aos mecanismos de mercado da época  pós-moderna.

Este mercado  acabou de descobrir um novo artigo: O Sagrado; e a partir daí, tira proveito das boas intenções dos fieis, desviando estas intenções.

O mercado descobriu que tal sagrado fascina.

Descobriu que as manifestações do religioso respondem a uma necessidade e que, consequentemente, há uma demanda por um tal produto. E  onde há demanda, ali se pode ganhar dinheiro. Começando com emoções religiosas e terminando com as cadeiras, alugadas aos participantes dos eventos sagrados. De medalhões, rosários, imagens, águas do rio Jordão, discos, amuletos, orações, velas e outros produtos nem vamos falar. Tudo, para o sistema neo-liberal, se torna produto, tudo se pode vender.

Muitos cristãos não percebem o mecanismo. E como conseqüência, observamos em tantos casos, como a sua boa fé está sendo explorada e os seus melhores sentimentos religiosos estão sendo profanados pelos interesses comerciais e ideológicos do sistema de consumo. Por um sistema, pelo qual este tal novo vigor, este entusiasmo religioso, apresenta na realidade nada mais do que a oportunidade de comercializar um novo produto.

Produto, que corresponde a uma demanda, é inegável. Mas, nem por isso, produto que dá lucro e que fica interessante enquanto der lucro.

E por causa disso, vamos assistir também no futuro a outros eventos de manifestações religiosas para as massas. Poderemos ver outros shows do sacrado e outras entrevistas de astros do show-buisiness religioso. Enquanto eles fazerem crescer os índices do IBOPE, os canais de televisão os transmitirão.

Isso irá até àquele ponto, onde a maioria dos espectadores começar a se cansar. Assistir a reuniões de massas que cantam músicas religiosas, pode ser interessante como ponto de partida. Mas, depois, a evangelização deve ir além disso. As propostas devem alcançar dimensões mais profundas.

Participar do entusiasmo de milhares de pessoas que se emocionam, pode ficar empolgante, mas, com o tempo se percebe que o puro emocionalismo ainda não deu a resposta às indagações existenciais e aos problemas da vida.

Eis a problemática e eis o perigo.

Depois do entusiasmo, se estabelece o vaziu.

Depois da êxtase, vem a frustração.

Dentro das regras do mercado, o sagrado como "produto", será trocado a partir do momento, onde não dá mais aquilo que prometeu: lucro. Será descartado como qualquer outro produto que, depois de ser enfatizado, se torna velho. Será abandonado nem só pelos vendedores, mas também pelos consumidores, acostumados a comprar aquilo que satisfaz.

O resultado, depois de uma onda de entusiasmo, será para muitos a frustração. E as mesmas massas que agora assistem às missas massificadas, aplaudirão amanhã no mesmo estádio a uma cantora que tira as suas roupas, e depois se deixam entusiasmar por um jogo de futebol.

A conseqüência será que, depois de uma onda de programas religiosos consumidos, grande parte dos consumidores de novo buscará algo diferente. É a partir disso que surge o grande desafio para toda tele-evangelização. Ela não pode ficar no nível superficial. Ela deve aprofundar o seu conteúdo. Ele deve falar das exigências e dos valores do Reino de Deus.

A "Nova Evangelização", assim como Santo Domingos a compreendeu, não  pode confiar nos  mecanismos do mercado para as massas. Porque este mercado, na realidade, só está interessada na exploração comercial de uma profunda necessidade religiosa. E, além disso, na manipulação ideológica daqueles que apresentam esta necessidade.

Isso nos conduz a mais uma problemática da atual onda de produtos sagrados: a exploração das necessidades  religiosas.

5. A exploração de uma profunda necessidade religiosa pelo mercado

O nosso povo é profundamente religioso. A religião faz parte de sua vida e de seu pensamento.

Numa época, onde tudo se pode tornar mercadoria, numa época, onde sempre se deve apresentar novos produtos, o mercado descobriu este sentimento religioso e fez dele um produto. Como conseqüência das profundas frustrações, causadas por uma sociedade puramente material, as pessoas redescobriram a dimensão do sagrado. Há uma demanda de religião sobretudo nas sociedades pós-modernas. Esta demanda ampla é interessante a ser explorada. O potencial econômico dela até pode ser incentivado pela propaganda. Quanto mais consumidores, melhor. A televisão se apresenta como meio de difusão, e assim, a demanda aumenta.

Religião está sendo apresentada como algo moderno, algo interessante, e já começam a funcionar os mecanismos do mercado, da mesma maneira como funcionam na comercialização daquilo que, uma vez, era a idéia original da festa de Natal. Na realidade, assistimos a uma profanação de conteúdos religiosos, e a maioria daqueles que dela participam, nem o percebem. Muitos também não o querem perceber. Eles encontram neste tipo de apresentação do sagrado uma religiosidade de fácil acesso, leve e sem grandes implicações sociais.

 Dentro deste contexto, os mega-eventos religiosos, promovidos por organizadores dos mais variados, desenvolvem um papel muito especial.

6. Mega-eventos religiosos respondem à insegurança de muitos cristãos que buscam uma auto-afirmação de seus sentimentos e desejos religiosos.

A época pós-moderna, da qual foi dita que ela produz uma nova busca pelo fenômeno religioso, de outro lado, também questiona e ridiculiza este fenômeno. Por causa disso, grandes camadas de nosso povo, profundamente religioso, profundamente emocional e de uma generosidade maravilhosa, estão ao mesmo tempo extremamente inseguras na sua religiosidade. Será que no século 21, ainda é moderno, ter religião ? Será que ser religioso não é algo ultrapassado ?

Há tantas vozes que dizem que sim. Há tantos mecanismos que confirmam a insegurança. Há tantas experiências que sugerem que a religião é algo do passado. E há tantas vozes que inspiram de maneira especial a idéia que uma fé, ligada às grandes igrejas tradicionais, hoje é superada.

Frente a tantas dúvidas, o indivíduo busca instintivamente uma afirmação para a sua religiosidade. Será que outros também são religiosos da mesma maneira como eu ?  Será que outros também consideram a religião como algo necessário ?

Será que um certo tipo de religiosidade ainda pode ser praticado ?

Frente a estas indagações, os mega-eventos religiosas de todo tipo exercem uma importante função psicológica. Os seus participantes se sentem confirmados na sua fé. Outros também são religiosos. Outros também confessem este tipo específico de religiosidade. Não estou sozinho.

A partir desta experiência começam a funcionar os mecanismos da psicologia de massas. O indivíduo, inseguro e cheio de dúvidas, experimenta na multidão de iguais a confirmação de sua convicção; -  exatamente aquela confirmação que precisava para esquecer as suas dúvidas.

Assim surge mais uma demanda que pode ser explorada pelo mercado. Mais um produto a ser vendido. Mais uma necessidade a ser incentivada. - E de novo encontramos os mecanismos do mercado neo-liberal, interessado em participar, ávido em lucrar, atento a propagar enquanto tal propagação promete algum lucro.

Só que há um imenso abismo entre tais eventos televisados de hoje, e as verdadeiras manifestações religiosas de nosso povo. Aquelas manifestações, onde este povo, na luta e na solidariedade fraterna, celebra a sua fé num Deus que renova todas as coisas. Aquelas celerações, onde este povo dá testemunha da profunda verdade que esta fé e esta nossa Igreja, também hoje,  tem as respostas aos grandes desafios da vida.

Quando analisamos o conteúdo transmitido por muitos dos mega-eventos religiosos da nova onda,

descobrimos que tais eventos, em muitos casos tem todas as características de um "Show". E como na maioria dos shows, encenados pelas mais variados interesses, um  conteúdo realmente consistente, é muito difícil de constatar. Há emoções, sim, há movimentação e hoba-hoba, mas nada mais. É um emocionalismo religioso, que depois de o evento acabar, para a maioria simplesmente evapora.

O mundo não foi transformado. O isolamento das pessoas continua o mesmo. A exclusão dentro da sociedade não diminuiu. Os mecanismos da competição de todos contra todos não desapareceram. As estruturas injustas não foram eliminadas. Aquilo que a  IV Conferência  do Episcopado Latino-Americano formulou de maneira magistral, não foi alcançado:

"Procuramos realizar o que ele fez e ensinou: assumir a dor da humanidade e atuar para que se converta  em caminho de redenção."[2]

Algumas dezenas de milhares de pessoas gozaram, sim, de um conforto religioso passageiro. Mas, será que é para isso que Jesus nos chamou ? Para buscarmos o nosso conforto espiritual ? Para gozarmos de emoções individualistas ou triunfalistas ?

Será que a sua mensagem do Reino de Deus se reduz a isso ? Emoções ?

Descobrimos aqui mais um dos mecanismos do mercado que explora o sagrado.

Tal mercado está interessado em emoções religiosas, mas não se interessa pelo conteúdo daquela religião; bem pelo contrário. Emoções podem ser manipuladas, o conteúdo não. Por causa disso, o sistema neo-liberal tenta de tudo, para transmitir tais emoções assim como se fossem o conteúdo. E tantos cristãos, mais uma vez, se deixam seduzir. É um pouco como se Jesus, na sua época, se teria jogado da torre do templo, para assim convencer as massas a acreditar que ele era o Messias. Jesus não o fez, apesar de ser tentado de agir assim ( cf. Lc 4, 9-12) . Jesus resistiu à tentação de fazer um show. Tantos cristãos não resistam. Em vez disso, entram de boa fé no jogo do sistema que os manipula. Sustentam os mecanismos neoliberais do mercado, sem o perceber.

Por causa disso, vale a pena lembrar outra vez os mecanismos deste sistema. E vale a pena, mais uma vez, mencionar que o interesse do sistema, em última análise, é a manipulação de sentimentos religiosos, e não a construção do Reino de Deus.

A melhor manipulação é aquela que convence o consumidor que em nada está sendo manipulado.

Participando deste princípio, o sistema usa o sagrado como meio, para compensar as profundas frustrações que ele mesmo causou. Não só usa o sagrado, mas também os defensores deste sagrado. Usa aqueles que, com a melhor intenção do mundo, querem dar à religião um aspecto mais jovem, mais moderno, mais atual. Preocupados com o avanço das seitas, com a falta de emocionalidade, com a perda de fieis, também em nosso Igreja há tantos irmãos e irmãs que se comprometeram com novos métodos de divulgação eletrónica do sagrado. Eles tem toda razão de se engajar nisso, e com certeza, têm as melhores intenções; as mais puras motivações.

Mas, uma vez que os mecanismos do mercado neo-liberal descobriram o sagrado como produto a ser lucrado, até as melhores intenções se podem tornar vítimas deles. O mercado e suas leis são mais fortes.

Por causa disso, é tão importante, conscientizar-se sobre o perigo.

Conhecer os mecanismo para não ser seduzidos por eles.

Ficar atento, para não chegarmos, num certo momento, àquele ponto, onde se aplica também para nós a dura crítica do profeta  Amós:

"Odeio, desprezo vossas festas e não gosto de vossas reuniões.

Porque se me ofereceis holocaustos, não me agradam vossas oferendas...

Afasta de mim o ruído de teus cantos, não quero ouvir o som de tuas harpas !

Que o direito corra como a água e a justiça como rio caudaloso". ( Am 5, 21-24)

7. O sistema neo-liberal usa a religião como mecanismo de compensação para as frustrações, causadas pelo próprio sistema.

O sistema neoliberal de mercado, por si-mesmo, causa profundas frustrações nos seus integrantes. Sob o lema de "eficiência" e de "qualidade total", exige do indivíduo um desempenho pleno que não deixa espaço por nenhuma dimensão emocional. O homem deve funcionar à maneira de uma maquina. Com qualidade total.

A competição substitui a solidariedade. No seu trabalho, cada um se torna o concorrente de cada um. Há qualificações permanentes do desempenho e uma corrida desenfreada para subir. Quem não participa, está sendo excluído e quem não agrada o seu chefe, não tem chances de sobreviver.

Neste sistema de mentiras mútuas, a pessoa se deve adaptar constantemente a novas exigências e deve permanentemente confirmar que o seu único interesse  é o bem estar da empresa, pela qual trabalha.

O resultado, no nível desta empresa, é uma maximização do lucro dela, e este, afinal, é o último lema do sistema.

O indivíduo, porém, que faz parte de um tal sistema, fica emocionalmente vaziu, profundamente frustrado nas suas necessidades pessoais. Afastado das dimensões transcendentes da vida e reduzido a um mecanismo funcional que o priva de todo sentido, além de ser consumidor.

Um tal indivíduo, porém, não é capaz de mostrar  desempenho total no seu trabalho. Uma tal pessoa perde a sua eficiência total.

O sistema, porém, é unicamente interessado nisso: Só que, no fundo, é ele mesmo que impossibilita aquilo que exige.

Para que possa funcionar apesar disso, para que a eficiência exigida seja possível, é imprescindível que as profundas frustrações de seus integrantes possam ser compensadas em outros níveis e por outras experiências. Uma pessoa frustrada não mostra eficiência total.

É por causa disso que o sistema neoliberal oferece mecanismos de compensação. Mecanismos capazes de compensar as frustrações que o próprio sistema gerou.

Estes mecanismos são basicamente três:

         O consumo

         O sexo

         A religião

Sobre os mecanismos do consumo já falávamos nas reflexões acima. Tudo serve como produto a ser consumado. O que tem valor, são as coisas e não mais a pessoa. Todo um sistema de propaganda cria as necessidades e promete o consumo como meio para satisfazer estas necessidades.

O sexo, por sua vez, está sendo apresentado também como produto de consumo. Descartável e rápido. A ser repetido a qualquer instante. Sem conteúdo, mas com muito emocionalidade. Do pono de vista da ideologia neo-liberal, sexo rápido que traz conforto sexual, e religião rápida que traz conforto espíritual, tem uma função similar. O mecanismo é o mesmo. Emoções rápidas e passageiras que podem ser comercializadas.

O último meio para compensar as frustrações, é a religião. Uma religião profundamente emocional. Uma religiosidade concentrada no indivíduo. Um culto do sagrada que no fundo em nada se distingue do culto do sexo ou do culto de qualquer outro produto. É este o ideal propagado pela ideologia neo-liberal, porque assim, as frustrações de um sistema racionalizado de produção, podem ser compensadas no nível emocional. É assim que o indivíduo se torna capaz de desenvolver um desempenho total naquele nível que só interessa ao sistema: No nível do mercado.

8. Há também um interesse ideológico na exploração do sagrado

Mas, além de todas estas razões mencionadas, existe ainda uma outra razão, por causa da qual, o sistema neoliberal está interessado numa religião, que se apresente de maneira totalmente emocionalizada e individualizada. É o interesse de se auto-consolidar.

Quanto mais, os cristãos se deixarem convencer que a única tarefa de religião é esta: Produzir conforto espiritual;  tanto menos, estes cristãos questionarão o sistema.

Quanto mais, os cristãos se deixarem envolver em eventos religiosos emocionalizados e individualizados, tanto menos, estes cristãos se lembrarão que o objetivo do fundador  de sua religião era a transformação do mundo. Era a transformação de sistemas que desprezam o homem. Era a superação de mecanismos que dão mais valor às coisas do que às pessoas. Era a substituição de estruturas de exclusão por estruturas de solidariedade, a conversão de sistemas que exploram, em sistemas onde haja fraternidade. Em uma palavra, a eliminação de todo sistema que gera morte.

O atual sistema neoliberal, porém, corresponde ponto por ponto à descrição de um sistema de morte. E com isso, é frontalmente oposto ao projeto de um Reino de Deus, propagado por Jesus.

O sistema faz de tudo para que os cristãos não percebam tal fato. Usa qualquer meio. Usa todos os níveis de propaganda para fazer acreditar que religião não tem nada a haver com o social. Recorre a todas as possibilidades de manipulação, para que os próprios cristãos acreditem que a religião deve exclusivamente ser praticada para louvar a Deus, para descobrir o sagrado, para salvar a sua alma, para sentir a presença de Deus, para gozar de conforto espiritual, para celebrar a beleza da fé, para alcançar a benção do Todo-Poderoso, etc. etc... - Mas, pelo amor de Deus, não para transformar o mundo atual.

O sistema neo-liberal em nada está interessado numa transformação do mundo conforme os critérios do Reino de Deus !

Eis o último e mais importante problema, com o qual estamos confrontados dentro da conjuntura   atual. Um problema, alias, conhecido e vivido pelo o própria Jesus. O Reino de Deus, propagada e transmitida por ele, estava sendo combatido por muitos. E muitos se opunham às idéias de Jesus, usando argumentos religiosos. Usando a própria religião, para combater aquilo que Jesus exigiu. Recorreram a Deus, para mostrar que o filho de Deus teria uma concepção falsa. Na realidade, é óbvia, era a sua concepção de Deus que estava errada, mas muitos não o perceberam ou não o quiseram perceber. E quando Jesus denunciou tal fato, eles o crucificaram.

Muitos também hoje não percebam que pode acontecer o mesmo. Que o Reino de Deus pode ser combatido, recorrendo a argumentos, tirados da própria religião.

Por causa disso, e frente a todo o atual mercado de "produtos" religiosos, vale a pena lembrar mais uma vez o grande lema do Concílio: "discernir os espíritos". Ali, onde os verdadeiros valores do Reino de Deus se realizam, ali é de fato o espírito de Deus que age.

Os valores do Reino, porem, como todo mundo sabe, são estes:

         Justiça em vez de injustiça

         Fraternidade em vez de individualismo

         Amor em vez de egoísmo

         Verdade, em vez de mentira e manipulação

         Paz em vez de competição e concorrência

Ali onde, em vez destes valores do Reino, há outros valores, não é o espírito de Deus que está agindo, mas o espírito do Neoliberalismo ou de qualquer outro sistema. Os valores destes sistemas podem ser propagados com os melhores lemas religiosos. Podem ser transmitidos por imagens das mais bonitas e através de eventos religiosos dos mais atraentes. Podem ser apresentados com argumentos dos mais emocionantes. Quando não tem no seu centro os valores do Reino de Deus, não são verdadeira evangelização. Quando o seu objetivo não é a transformação de situações de morte em situações de mais vida, não segue o exemplo de Jesus. Aquele exemplo, lembrado pelos nossos Bispos a partir do episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-17).

No encontro com eles, o Senhor "corrige os erros de um messianismo puramente temporal e de todas as ideologias que escravizam o homem. Explicando-lhes as Escrituras, ilumina-lhes a sua situação e abre-lhes horizontes de esperança."[3]

Lembrar-se deste modelo, dizem os nossos Bispos, significa descobrir o verdadeiro "modelo da nova evangelização". [4]


Notas bibliográficas:

[1] Ricardo Mariano, Neo-Pentecostais, Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, ed. Loyola 1999, p. 9

[2]  SANTO DOMINGOS, Conclusões, ed. Loyola 1992, p. 38

[3]  Mensagem da IV Conferência  Episcopal, aos povos da America Latina e Caribe, No. 19, cit. cf.: SANTO DOMINGO, Conclusões, op. cit., p. 41

[4] SANTO DOMINGO, op. cit., No. 13, p. 39