O padre que ensinou João paulo II a falar português

Por Alexandre Ribeiro


Em 1980, nos preparativos da primeira viagem de João Paulo II ao Brasil, um padre brasileiro foi chamado para trabalhar na Secretaria de Estado do Vaticano e ajudar o Papa a aprender a língua portuguesa.

Hoje bispo em Garanhuns (Pernambuco, nordeste do Brasil), Dom Fernando José Monteiro Guimarães, missionário redentorista, contou a Zenit esta história. Sobre a facilidade do Papa em aprender o idioma, o bispo confessa que chegou a pensar: “meu Deus, estou vendo a realidade do Espírito Santo”.

–Como o senhor foi chegar a ser professor de português de João Paulo II?

–Dom Fernando Guimarães: Eu trabalhava na época como padre assessor do cardeal Dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio de Janeiro. Embora sendo missionário redentorista, vivendo no convento, eu trabalhava a serviço da arquidiocese em tempo integral. Fazia parte da assessoria de pastoral, da assessoria de imprensa e da equipe teológica do cardeal Sales. No início do ano de 1980, preparando-se a primeira visita de João Paulo II para o Brasil, sentiu-se necessidade na Santa Sé de um padre brasileiro, pois na época, na Cúria Romana, tinha o cardeal Agnelo Rossi, Dom Lucas Moreira Neves, ainda bispo, e praticamente só.

Então sentiu-se a necessidade de alguém que, na Secretaria de Estado, junto com o oficial de língua portuguesa, que era um monsenhor português, pudesse assumir os preparativos da viagem apostólica de João Paulo II, que foi a terceira viagem de seu pontificado. Não havia know-how, uma estrutura montada para uma viagem papal, que era ainda uma enorme novidade na época.

Eu fui para Roma em fevereiro de 1980, para então trabalhar na Secretaria de Estado. Os trabalhos de preparação da viagem papal diziam respeito à organização geral da visita, desde o acompanhamento da parte técnica, a colocação dos discursos do Santo Padre em português, o diálogo e o entendimento com a Conferência episcopal e com o governo brasileiro.

–Como eram as aulas de português para o Papa?

–Dom Fernando Guimarães: Nós nos encontrávamos regularmente para a celebração da Santa Missa na capela privada do Papa. De fevereiro até julho de 1980, quando houve a viagem, organizava-se duas vezes por semana a celebração da Santa Missa em língua portuguesa. Com a colaboração de monsenhor Stanislaw Dziwisz, secretário pessoal do Papa, juntávamos para cada missa um grupo de religiosas brasileiras em Roma. Elas vinham, cantavam em português. Faziam-se também as leituras em português. Após a Missa, o Santo Padre as recebia um breve momento para a bênção. Depois se ia para o café da manhã, já só os colaboradores imediatos do Santo Padre, para o trabalho. Ele trabalhava muito durante as refeições. Isso fizemos duas vezes por semana até o dia da viagem, quando viemos para o Brasil.

Eu tive a honra, naquela ocasião, de ter sido o único brasileiro membro da comitiva papal. Durante os 12 dias da viagem ao Brasil, entre uma cidade e outra, muitas vezes durante os voos internos, era normal que o Papa me chamasse e então repassávamos os discursos da etapa seguinte.

–Então o Papa dedicava muita atenção à realidade que visitava?

–Dom Fernando Guimarães: Sim. Isso me impressionou muito. Lembro-me de um episódio. Estávamos vindo do sul do Brasil para o nordeste –visitamos naquela viagem o país inteiro, do norte ao sul– e me lembro que fizemos uma escala técnica em Sergipe, porque o embaixador do Brasil junto à Santa Sé naquela época era natural de lá. Quando estávamos já com o avião baixando para aterrissar, eu recebi um aviso do monsenhor Stanislaw, dizendo que o Papa me chamava para ir a sua cabina.

O Papa me disse: “Fernando, eu percebo que as casas dos pobres daqui não são iguais às que a gente viu no sul. Quais são as diferenças?” Do avião ele viu os mucambos do nordeste. No sul ele tinha visto as pequenas casas de madeira. Ele estava vendo pela primeira as casas de barro e de teto de palha. O Papa queria que eu explicasse como é que o pobre nordestino vivia. Eu, sendo nordestino, expliquei para ele. Até o pouso eu pude falar da situação de pobreza no nordeste. João Paulo II tinha uma sensibilidade enorme. Depois, no momento de fazer o pequeno discurso, ele saiu com umas improvisações. Disse: “Senhor, o teu povo passa fome”. Isso não estava no texto oficial. Era a reação dele à realidade que enxergava com os próprios olhos.

–O Papa foi ágil em aprender o português?

–Dom Fernando Guimarães: Sim. No Vaticano, num desses encontros em que se praticava a língua portuguesa, eu me recordo que usei uma palavra que ele não entendeu. Então ele me perguntou o significado, anotou, e continuamos o trabalho. No encontro seguinte, dois ou três dias depois, em determinado momento, ele criou uma frase em português com a tal palavra. Quando ele acabou de fazer isso, olhou-me com um olhar maroto, um modo especial que ele tinha de olhar quando queria brincar ou provocar, fechando um pouco os olhos. Com um sorriso, deu a entender: “viu que eu entendi”.

João Paulo II era de uma facilidade impressionante. Ele conhecia bem o espanhol. Como jovem padre, quando estudou nos anos 40 em Roma, fez a tese de doutorado em teologia sobre a fé nos escritos de São João da Cruz, o grande místico carmelita espanhol. Para fazer o estudo, ele teve de ler os escritos de São João da Cruz na língua original. E ler o espanhol de São João da Cruz significa não somente ler o espanhol moderno de hoje, mas o espanhol do século XVI. O conhecimento que ele tinha da língua espanhola facilitou a aprendizagem do português.

Aqui no Brasil, ele teve uma dificuldade, que na época foi até mencionada por um dos órgãos de imprensa do Brasil. Era o som nasal “ão”, que saía um som mais oral. Na época brincaram que a nota para o professor de português foi 9.

Um outro exemplo da facilidade dele. No encontro privativo com os bispos, ao final da visita, tinham preparado que alguns bispos falassem, o que não estava previsto no programa. O Papa não tinha nenhum texto preparado para essa ocasião. Foram cinco ou seis intervenções em que os bispos manifestaram suas preocupações e anseios, com temas precisos e delicados. Eu estava no fundo da sala, ao lado de monsenhor Stanislaw, e indiquei que o Papa respondesse em algum idioma que ele dominava bem, como o espanhol, o francês, ou mesmo o italiano, que quase todos os bispos compreendem bem, dada a delicadeza dos temas.

O Papa tinha pedido ao início papel e lápis para fazer anotações. Quando terminaram as intervenções, João Paulo II se levantou e disse em português: “os senhores vão compreender que eu não tenho condições de responder neste momento, mas por favor me dêem os textos por escrito que eu vou estudar com calma em Roma e darei as respostas. No entanto...” E aí começou, em português, uma reflexão séria, teológica, pastoral. Ponto por ponto, ele falou pouco mais de 20 minutos, sem um texto escrito. Apesar de vários ‘italianismos’ na estrutura, que não foram propriamente erros, se ele cometeu nesse tempo uns quatro ou cinco erros de português, isso foi muito. Erros que não atrapalharam em nada a compreensão do que ele estava dizendo. Quando ele terminou de falar, eu, do fundo da sala, pensava comigo: “meu Deus, estou vendo a realidade do Espírito Santo”.


Fonte: Zenit.com