"Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Más há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isso não tem importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado".
(William Shakespeare)
Os amigos do Mestre pareciam estranhamente intranqüilos naquela noite. A escuridão havia caído depressa sobre a cidade e o fogo das lâmpadas exalavam um odor característico de aceite queimado. Olhei em volta e percebi a certa distância a presença de alguns guardas do Templo. Se me vissem seria reconhecido com certeza. Esperei que se afastassem para que eu pudesse sair do meu esconderijo nas sombras, com o coração prestes a saltar pela garganta. Senti a porta se fechar atrás de mim e um frio lacerante correu pelo corpo.
Segui meus guias com passos cautelosos. Iria finalmente conhecer o nazareno, filho de José, o carpinteiro. Seria ele, de fato, o Salvador de quem Moisés escreveu na Lei e também os profetas? Os sinais realizados em Caná da Galiléia e a expulsão dos cambistas e vendedores de animais do Templo usando um chicote feito de cordas pareciam indicar que, realmente, a espera terminara e que o Libertador de Israel finalmente estava pronto para livrar nosso povo do julgo dos impuros e idólatras. Quem mais, além dele, pronunciaria sentenças do tipo: “Destruam esse Templo, e em três dias eu o levantarei”?
Enquanto seguia os amigos do Rabi naquela excursão secreta pelas ruas e becos da cidade, tentava adivinhar as feições do galileu. Aqueles que o viram pregar no Templo e nas sinagogas diziam que era moço, alto, cabelos longos escurecidos e pele bronzeada. Tais pensamentos me fizeram perder o contato com a realidade por um breve instante e quase expus nossa presença quando tropecei em uma pedra no caminho. Um dos discípulos voltou apressado na minha direção e estou certo que o olhar que me lançou escondia uma linguagem profundamente obscena. Pedi desculpa e com certa dificuldade me pus de pé, mãos e braços sujos de terra e com tênues rastros de sangue nos cotovelos.
Continuamos a caminhada por mais alguns minutos, até chegarmos a uma pequena casa de aspecto humilde, onde crepitavam pequenas lâmpadas no seu interior, denunciando a movimentação dos moradores no recinto. Antes de entrar, corri a vista pelos arredores, na busca de algum espião, porém não percebi nada de anormal na vizinhança. Fomos recebidos por um senhor atarracado, que nos indicou o local da secreta reunião. Cruzamos um pequeno corredor escuro e seguimos até uma sala ampla, onde fui revistado por um homem que, pelos trajes e cheiro característicos, devia ser pescador. Descemos alguns degraus e mesmo de longe pude divisar aquela figura esguia, alegre, de face transluzente e olhar penetrante. Lá estava ele, o Mestre, o Rabi. O grupo discutia sobre os riscos de permanecer em Jerusalém depois dos últimos acontecimentos.
- Mestre, acho que deveríamos considerar a proposta de Pedro. Sabemos como são ardilosos os Sacerdotes e fariseus desta cidade e quantas ciladas são tramadas nos corredores do Sinédrio. Não é prudente continuarmos em Jerusalém depois do incidente com os comerciantes no Templo. Há muita gente enfurecida a tua procura.
- Basta com tua insistência, André. Permaneceremos aqui o tempo que for necessário. Lembrem-se disso, vocês todos: todos aqueles que o Pai me dá, virão a mim. E eu nunca rejeitarei aquele que vem a mim, pois eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim para fazer a vontade daquele que me enviou. E a vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas que eu os ressuscite no último dia. Esta é a vontade do meu Pai: que todo homem que vê o Filho e nele acredita, tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.
Dito isto, um silêncio tomou conta da sala por um breve instante. Um homenzinho feio, chamado Yehoudah (Judas), filho de Rubens Simão, da aldeia de Queriote, se levantou:
- Mestre, temo que Andre esteja com a razão. É preciso considerar os riscos que todos nós corremos se formos pegos pelos guardas do Sinédrio - disse isso enquanto olhava em minha direção. Senti a frieza do olhar de Yehoudah penetrar forte em minha carne feito a lâmina de uma sica (adaga), como aquela que ele carregava atada à cintura naquela noite. Descobri mais tarde que Yehoudah fizera parte do grupo dos sicários antes de se juntar ao grupo do Mestre, e como ficou claro, seu ódio pelos sacerdotes e mestres da lei continuava aceso.
Enquanto uma nova discussão se iniciava entre os discípulos, fui até a janela para me certificar de que não havia sido seguido. Um vento frio soprou levantando alguns galhos secos largados na rua. Olhei pela fresta da janela a luz fraca da lua e uma sensação de arrepio correu por minha espinha quando o som triste e melodioso de uma coruja-da-palestina ecoou pela viela deserta. Lembrei da minha infância nos altiplanos de Jerusalém, quando costumava violar os ninhais nas tocas e copas de árvores. Embora a lei judaica proibisse que se tirasse do ninho a ave-mãe, tal proibição jamais pareceu severa aos meninos da nossa vila. Como estava bastante familiarizado com aquele tipo de ave, imaginei se a estranha sensação que me invadiu no instante em que ouvi o chirriar do pássaro não seria presságio de um mal iminente.
Enquanto divagava, a mão pesada do Mestre pousou sobre meu ombro. João, filho Zebedeu e de Salomé, estava ao seu lado.
- Mestre, este é Nicodemos, o mestre da lei de que te falamos. Ele crê que és o Salvador – disse João.
- Sei quem ele é e o que faz aqui. Seja bem vindo, meu amigo. Perdoe-nos a falta de cortesia. Beba um pouco conosco.
Aproximamo-nos da mesa enquanto o restante do grupo prosseguia na altercação. Àquela distância pude sentir uma suave fragrância de sândalo vinda do Mestre. Sentamos em um canto da mesa, distante dos demais. Com um gesto de mão, ele fez sinal para que eu chegasse mais perto. Depois de uma breve pausa, cortou o silêncio com um sorriso e disse:
- És um homem sábio, Nicodemos, e de coração puro. Porém, apesar de tanto conhecimento e prestígio, há um vazio em sua vida que você não consegue explicar. O que você busca está aqui, nesta sala.
A luz crepitante da tocha suspensa num canto da sala criava sombras estranhas ao redor do rosto do meu interlocutor, como se fantasmas tentassem roubar o seu brilho e levá-lo de vez para a escuridão. Sem pestanejar e ainda emocionado, balbuciei:
- Rabi, sei que tu és um Mestre vindo da parte de Deus. Ninguém pode realizar os sinais que tu fazes, se Deus não está com ele.
- Nicodemos, eu garanto a você: se alguém não nasce do alto, não poderá ver o Reino de Deus.
- Como é que um homem pode nascer de novo, se já é velho? Poderá entrar outra vez no ventre de sua mãe e nascer?
- Eu garanto a você: ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nasce da água e do Espírito. Quem nasce da carne é carne, quem nasce do Espírito é espírito. Não se espante se eu digo que é preciso vocês nascerem do alto. O vento sopra onde quer, você ouve o barulho, mas não sabe de onde ele vem, nem para onde vai. Acontece a mesma coisa com quem nasceu do Espírito.
- Como é que isso pode acontecer?
- Você é o mestre em Israel e não sabe essas coisas? Eu garanto a você: nós falamos aquilo que sabemos, e damos testemunho daquilo que vimos, mas, apesar disso, vocês não aceitam o nosso testemunho. Se vocês não acreditam quando eu falo sobre as coisas da terra, como poderão acreditar quando eu lhes falar das coisas do céu? Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu: o Filho do Homem. Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, do mesmo modo é preciso que o Filho do Homem seja levantado. Assim, todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna. Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, e sim para que o mundo seja salvo por meio dele. Quem acredita nele, não está condenado; quem não acredita, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho único de Deus. O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal, tem ódio da luz, e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam desmascaradas. Mas, quem age conforme à verdade, se aproxima da luz, para que suas ações sejam vistas, porque são feitas como Deus quer.
Ao final daquela noite, dei-lhe um abraço afetuoso e voltei para casa com um brilho de eternidade nos olhos.
Tivemos outros encontros nos meses que se seguiram. O Rabi realizou diversos sinais e muitos acreditaram que ele era, de fato, um Mestre vindo da parte de Deus.
* Artigo escrito por Nicodemos.