Nesta comemoração do centenário de nascimento de Dom Helder Câmara, damos graças a Deus pelo dom de sua vida, repleta de sabedoria, profetismo e doação à Igreja e aos irmãos. Neste momento especial de graça, “ofereçamos da Deus, por meio de Jesus, um perene sacrifício de louvor” (Hb 13,15) como ouvimos na primeira leitura, tirada da Carta aos Hebreus.
Aos 90 anos de idade, em 1999, Dom Hélder partiu para o encontro definitivo com o Pai. Mas, aqui na terra, ele já estava “em suas mãos”, conforme dizia seu lema episcopal. Um de seus poemas expressa bem sua postura mística diante da hora final: “Um dia para cada um de nós/ O sol se erguerá pela última vez./ Luz, minha irmã,/ Não haverá meios de avisar-me/ que chegou meu último dia?/ Ou o melhor ainda é o conselho evangélico:/ de viver cada dia/ como se fosse o último,/ Ou ainda melhore/ Como se fosse sempre o primeiro...”.
Dom Helder nasceu em Fortaleza, aos 7 de fevereiro de 1909; foi o décimo primeiro filho do casal João Eduardo Torres Câmara e Adelaide Rodrigues Pessoa. Aos 14 anos ingressou no Seminário da Prainha, em Fortaleza, onde fez seus estudos em preparação para o sacerdócio. Muitas vezes Dom Hélder contou que, quando ele avisou para a família que queria ser padre, seu pai o advertiu: “meu filho, ser padre é coisa muito séria; padre e egoísmo não se unem”. Com os padres lazaristas holandeses do Seminário, aprendeu que seu nome “Helder’ significava: “sem nuvens, límpido, sem complicações”. Era assim que ele queria ser.
Com poucos anos de sacerdócio, padre Hélder partiu de Fortaleza para o Rio de Janeiro, onde foi recebido, com carinho, pelo Cardeal Sebastião Leme. Na então capital da República, realizou sua missão durante 28 anos, com abundantes e excelentes frutos.
No início, padre Hélder trabalhou, sobretudo, no campo da educação. Depois, dedicou-se a outras atividades pastorais: criou o Banco da Providência e a Cruzada São Sebastião onde dava passos definidos para viver sua opção pelos pobres. Como assistente da Ação Católica especializada tornou-se grande incentivador da formação de um laicato maduro, a serviço do Reino de Deus.
Em 1952, foi nomeado bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Foi ele o fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, dez anos antes do Concílio Vaticano II. Em 1955, por ocasião do Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, participou ativamente da fundação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), juntamente com Mons. Manuel Larraín, Bispo de Talca, no Chile. Na CNBB, exerceu o cargo de secretário geral por 12 anos. Seu ministério episcopal foi marcado pelos sentimentos de Jesus que “vendo numerosa multidão, teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (cf. Mc 6,30-34) como nos disse o evangelho há pouco proclamado.
Em 1964, durante o Concílio Vaticano II, Dom Helder foi nomeado Arcebispo Metropolitano de Olinda e Recife. Doze dias após o golpe militar, ele assumia o pastoreio desta importante Arquidiocese, tendo a seu lado o admirável Bispo Auxiliar Dom José Lamartine soares. Dom Helder vai se firmando, sempre mais, como grande profeta, cuja palavra repercute para além de sua Arquidiocese e vai ecoar em todo o Brasil, em outros países da América Latina e chega até a diversas partes do mundo.
Dois fatores significativos acentuavam a importância fundamental da presença de Dom Helder naquele momento no Nordeste brasileiro: no campo socioeconômico, o golpe militar de 1964; no campo eclesial, o Concílio Ecumênico Vaticano II em sua extraordinária perspectiva de renovar a Igreja diante dos grandes desafios dos tempos atuais.
Durante o regime militar, Recife torna-se um dos campos de numerosas prisões por motivos políticos. Como em outras partes de nosso País, em Recife o clima de medo invadia a população e a repressão atingia as lideranças que não se dobravam diante da ditadura.
Para o regime militar, eram já conhecidas as posições de Dom Helder, tanto pela sua atuação na cidade do Rio de Janeiro, como pelos seus posicionamentos em nível nacional, especialmente na defesa dos direitos dos pobres, na promoção da justiça, da democracia e da liberdade de expressão.
Ao chegar à Arquidiocese de Olinda e Recife, Dom Helder dirige sua mensagem de pastora, abre o coração aos seus diocesanos e procura desarmar os espíritos. Sua primeira saudação é permeada de liberdade evangélica: “quem sou eu e a quem estou falando ou desejando falar – um nordestino falando a nordestinos, com os olhos postos no Brasil, na América Latina e no mundo. Uma criatura humana que se considera irmão de fraqueza e de pecado dos homens de todas as raças e de todos os cantos do mundo. Um cristão se dirigindo a cristãos, mas de coração aberto ecumenicamente, para os homens de todos os credos e de todas as ideologias. Um bispo da Igreja Católica que, à imitação de Cristo, não vem para ser servido, mas para servir...”. Sua mensagem estava embebida de sabor profético e de teor missionário. Apresenta-se como o bispo de todos ao explicitar sua postura pessoal e suas prioridades: “Minha porta e meu coração estarão abertos a todos, absolutamente a todos. Cristo morreu por todos: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno”.
Dom Helder traz consigo uma bagagem de experiências acumuladas. Chega ao seu novo campo de ação pastoral com ouvidos abertos para ouvir, olhos atentos para enxergar e coração grande para acolher. Logo imprime o traço característico de sempre querer trabalhar em conjunto. Assume o pastoreio desta porção do Rebanho do Senhor, desejoso de ser fiel aos apelos da Igreja e ao sopro do Espírito no meio de um povo que espelha o rosto do Cristo Sofredor, como descreveram os bispos na Conferência de Puebla, em 1979. Com audácia evangélica, Dom Helder repetia: “Quem é despertado para as injustiças geradas pela má distribuição da riqueza, se tiver grandeza d’alma captará os protestos silenciosos ou violentos dos pobres. E o protesto dos pobres é a voz de Deus”.
Seus pronunciamentos, homilia e iniciativas pastorais começam a incomodar o regime militar que o condenou, em 1970, a ser silenciado pelos meios de comunicação de todo o país. Um ofício dos militares que assumiam o Poder, dirigido a todos os órgãos de comunicação, os proibia de falar a favor ou contra Dom Helder. Não podiam mesmo citar o seu nome. Ele mesmo afirmava: “decretaram que eu não mais existia”. Mas, com certeza, muitas vezes vieram à mente e ao coração de Dom Helder as palavras do salmista que cantamos no salmo responsorial: “Ele me guia no caminho mais seguro, pela honra do seu nome. Mesmo que eu passe pelo vale tenebroso, nenhum mal eu temerei. Estais comigo com bastão e com cajado, eles me dão segurança!” (Sl 22).
Se por um lado, a atitude dos militares limita sua ação de pastor diocesano, por outro lado, o lançava na missão profética além das fronteiras do Brasil, com convites insistentes para fazer conferências em muitas partes do mundo. Sua presença irradiava confiança e suas palavras sedimentavam a mística do compromisso evangélico. Sendo por vezes sinal de contradição, não deixava de ser sinal de esperança, sobretudo para os mais pobres e para todos aqueles que lutam pela justiça e pela paz.
Um dos fatos que lhe trouxe maior sofrimento foi o assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto, a 27 de maio de 1969. Era ele um jovem sacerdote que trabalhar na pastoral da juventude estudantil. O trágico acontecimento queria atingir a Arquidiocese de Olinda e Recife e o seu Arcebispo.
Durante o Vaticano II, Dom Helder soube aproveitar a oportunidade dos contatos com todos os episcopados do mundo. Esse papel singular que soube desempenhar durante o Concílio lhe oferecia a possibilidade de tornar-se missionário do mundo, como peregrino da justiça e da paz.
Um relacionamento especial de amizade ele travou imediatamente com os bispos que tinham maior sensibilidade para a problemática do “Terceiro Mundo”. Neste contexto, surge o famoso grupo de bispos, provenientes de todos os continentes, que se encontrava, a cada sexta-feira, para refletir sobre a missão da Igreja junto aos pobres e a necessidade de a Igreja ser sinal do Cristo pobre. Ao final do Concílio, no dia 16 de novembro de 1965, quarenta bispos de várias partes do mundo reuniram-se numa catacumba em Roma e assinaram o Pacto das Catacumbas. Cada um assumia o compromisso de viver pobre, rejeitar as insígnias, símbolos e privilégios do poder e a colocar os prediletos de Deus no centro de seu ministério episcopal, explicitando assim a evangélica opção pelos pobres.
Dom Helder tinha como lema missionário o versículo da carta de São Paulo aos Romanos: “esperando contra toda esperança, como Abraão” (Rm 4, 18). Para tanto, em suas viagens internacionais, estimulava as minorias abraâmicas, - semeando grupos em todos os continentes. As minorias abraâmicas eram formadas por aquelas pessoas que esperavam, apesar dos pesares, com firmeza permanente, se comprometendo com a construção de uma sociedade justa e fraterna. Era a não violência ativa.
Nesta comemoração do centenário do nascimento de Dom Helder, ecoam, com sentido renovado, as palavras da Carta aos Hebreus que ouvimos há pouco: “Não vos esqueçais das boas ações e da comunhão, pois esses são os sacrifícios que agradam a Deus. O Deus da paz, que fez subir dentre os mortos aquele que se tornou, pelo sangue de uma aliança eterna, o grande pastor das ovelhas, nosso Senhor Jesus, vos torne aptos a todo bem, para fazerdes a sua vontade; que ele realize em nós o que lhe é agradável, por Jesus Cristo, ao qual seja dada a glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (Hb 13,16.20-21).
* Homilia de Dom Geraldo Lyrio Rocha, arcebispo de Mariana (MG) e residente da CNBB, na missa do centenário de nascimento de dom Helder Camara, em Recife (PE).
Fonte: CNBB Nordeste 2