Creio que todos conhecem essa fábula. Foi escrita pelo poeta e escritor dinamarques Hans Christian Andersen e conta a estória de dois espertalhões que ludibriaram o rei de um certo país, fazendo-o acreditar que estava vestindo uma roupa mágica, produzida a partir de um tecido especial, invisível, que só os mais sábios dentre os homens da Terra conseguiam enxergar. Óbvio que não havia roupa nenhuma, nem tecido mágico, e o rei na verdade estava era despido, com as pudendas de fora. No dia marcado para apresentação do novo traje real, o rei apareceu na sacada do palácio, todo orgulhoso, “ostentando” a nova vestimenta mágica. O público a tudo assistia boquiaberto. Nem o rei nem os ministros haviam explicado às pessoas do local as propriedades mágicas da roupa do rei. E ainda que nenhum dos presentes admitisse, saltava aos olhos da platéia a vexatória realidade – o Rei estava nu! Nuzinho em pêlo. A única pessoa com coragem para desmascarar a farsa foi uma criança, que gritou do alto de uma árvore: O rei está pelado!
Certo, o que essa estória nos propõe à guisa de ensinamento? Primeiro, que o mundo está cheio de golpistas e que há sempre um tolo pronto para acreditar em suas promessas. Segundo, que a realidade, apesar de clara, nem sempre é “apreendida” corretamente pelas pessoas. Terceiro, não há limites para a hipocrisia humana. Não sei quanto a vocês, amigos leitores, mas a fábula de Andersen, com todas as vírgulas e pontos, serve perfeitamente aos propósitos de nossas reais autoridades municipais – delegados, chefes militares, promotores, juízes, políticos em geral -, mormente quando tentam explicar a crise que se abateu sobre os orgamismos da segurança pública em nossa cidade.
O rei está nu e as pessoas insistem em enxergar o contrário. Quarenta e poucas mortes em dez meses. Nenhuma prisão. Os delegados reclamam que não há ajuda por parte das pessoas e que sem testemunhas é impossível dar andamento aos inquéritos policiais. Estão certos. Até certo ponto. O silêncio é um péssimo aliado da Justiça. O rei com sua enorme barriga e nádegas murchas à mostra e ninguém ousa falar o que sabe. Sem provas não há como imputar aos criminosos a autoria de seus crimes. Isso eu sei, você sabe, o mundo inteiro sabe. Não preciso de delegado para explicar coisas do tipo. O problema é que o papel de investigar vai além de colher depoimentos. Isso eu sei, você sabe, o mundo inteiro sabe. Menos os delegados. Olha a bunda gorda do rei!
Em março deste ano, perdi um parente próximo vítima dessa violência. Um jovem de vinte e poucos anos, assassinado com um golpe de faca no peito. Morreu de choque hipovolêmico causado por hemorragia (perdeu quase todo o sangue antes de ser socorrido pelos paramédicos). O mais trágico: o crime ocorreu na noite de Páscoa. Em pleno dia da Ressurreição do Senhor. Passados sete meses do ocorrido, não há um único culpado atrás das grades. Aliás, dizem que o assassino chegou a ser interrogado pela polícia, mas continua solto, adivinhem por qual motivo - “falta de provas”. Segundo a delegada responsável pelo inquérito, não há colaboração por parte da sociedade na elucidação do fato. Que faremos então, os familiares do morto? Saímos à caça do assassino, com armas em punho, como investigadores coadjuvantes? Que grande besteira! O rei está nu, com o c… de fora. Essa é a grande verdade.
Hans Christian Andersen escreveu outras estórias de sucesso, como O Abeto, O Patinho Feio, A Caixinha de Surpresas, Os Sapatinhos Vermelhos, O Pequeno Cláudio e o Grande Cláudio, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia, A Princesa e a Ervilha, mas a Roupa Nova do Rei é certamente a estorinha que deveríamos contar todas as noites às nossas crianças, para que elas aprendam desde cedo que não é certo se deixar levar pelas aparências nem pelos discursos oficiais.
Para finalizar, recordo a paródia feita por Rubem Alves na qual ele apresenta um final hipotético para o conto de Andersen. De acordo com a versão sugerida pelo professor-emérito da Unicamp, a criança no alto da árvore teria gritado: “O rei está pelado!” Foi aquele espanto. Um silêncio profundo. Seguido pelo grito enfurecido da multidão. “Menino louco! Menino burro! Não vê a roupa nova do rei! Está querendo desestabilizar o governo! É um subversivo, a serviço das elites!”. Com estas palavras agarraram o menino, colocaram-no numa camisa de força e o internaram num manicômio. Moral da estória, segundo Rubem Alves: “Em terra de cego quem tem um olho não é rei. É doido”.
* Artigo escrito por Nicodemos.
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