Casos registrados no Sertão pernambucano desafiam as estatísticas oficiais de desenvolvimento social e revelam a tragédia de crianças que perderam a visão por falta de comida
Ana Vitória sobreviver é um milagre. Sua existência, um incômodo. Aos olhos e à condição mínima do que se costuma chamar dignidade. O corpo mirrado pela ausência de tudo. Difícil adivinhar a cor de sua pele. Não é preta nem branca. É pele de cobra, coberta de feridas, inchando nuns lugares, murchando noutros. Ana Vitória escapou das garras da morte, mas foi marcada pelo círculo de ferro da fome. A falta de comida fez seus dois olhos secar. Secaram até cair, esfarelando-se em pedaços, desmanchando-se no espetáculo do absurdo. Ana Vitória ficou cega, desnutrida de alimento e esperança. Seu rosto é um grito desesperado de socorro. O retrato extremo de um Brasil que passa fome.
A menina de 1 ano e 2 meses foi definhando aos poucos, um dia de cada vez. Vivia de garapa, água com farinha, raramente bebia leite. Não demorou para a tragédia aninhar-se no barraco de taipa, cercado de esgoto e lixo, na periferia de Floresta, Sertão do Estado, onde Ana Vitória vive com a mãe e os quatro irmãos. Há quase dois meses, quando foi internada no Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip), tinha virado pele e osso. A fome havia modelado seu corpo. Era um livro de desnutrição completo. Nem dava para dizer os nutrientes que faltavam. Faltava tudo.
A ciência ensina o que aconteceu com Ana Vitória: chama-se hipovitaminose. Uma doença da fome. Ela ficou cega de tanto o corpo procurar e não achar o mínimo de vitamina A para alimentar os braços, mover as pernas, irrigar os olhos. A menina conheceu a fome ainda na barriga da mãe. Josivânia dos Santos, 23 anos, mulher negra e analfabeta, chegou a prostituir-se para dar o que comer à filha. Pedia de porta em porta, ganhava aqui e ali um pacote de feijão, um quilo de arroz, caridade de vizinhos quase tão miseráveis quanto ela. Quando não conseguia, não comia. Nem ela, nem os filhos.
Na semana passada, as duas voltaram para casa. Mas não existia mais casa lá. O barraco de taipa, onde a família morava de favor, tinha virado um monte de escombros. Foi derrubado para dar lugar a uma residência de tijolo, que Josivânia também não terá dinheiro para alugar. “Ainda não sei o que fazer. Por enquanto, vou me virando pela casa de uma irmã, de um vizinho. Até Deus ajudar”, diz, num desamparo só.
No futuro, Ana Vitória vai ganhar olhos de vidro. Rafael, 1 ano e 6 meses, habitante do mesmo planeta fome, parece já ter o seu. Ele ficou cego do olho direito. O garoto mora em Ipubi, também no Sertão pernambucano, terra generosa em fabricar meninos desnutridos. Quando era só pele, ossos e feridas, Rafael começou a criar uma nata nos olhos. A mãe não sabia mas era a remela da fome. Maria Ivonete Freire, 26, tem dificuldade de entender o que aconteceu com o filho. “Ele pegou isso no hospital. Saiu de casa apenas com diarréia. Mas não foi por nada não. Foi só porque estava muito desnutrido”, diz, num misto de ignorância e desleixo.
O JC encontrou o menino, no meio da tarde, ainda sem almoçar. Chorava de fome e estava com o corpo quente, febre que a mãe nem sequer havia notado. Maria Ivonete se apressa para fazer um mingau de arroz, a única comida da casa. Questionada sobre o que Rafael e os outros três filhos iam comer mais tarde, a mãe responde que, à noite, “a gente janta qualquer coisa e vai dormir”. “E o que é qualquer coisa?”, quis saber a reportagem. Desta vez, só o silêncio como resposta.
Ana Vitória e Rafael desafiam o Brasil das estatísticas oficiais. Nos últimos dez anos, o País viu a quantidade de suas crianças desnutridas cair pela metade. Uma notícia boa, mas perigosa. Porque as estatísticas médias costumam camuflar a verdade. Fazem tragédias particulares se perderem na frieza dos números. Escondem histórias como a de Ana Vitória e Rafael. Como se fosse possível esquecer a expressão de horror impressa nos rostos dos meninos cegos pela fome.
fonte: Jornal do Commercio