A morte como espetáculo

Não sei se acontece com todos e todas o que se passa comigo: não agüento mais o noticiário sobre a morte da menina em São Paulo. É manhã, tarde e noite na televisão (por sorte quase não escuto rádio), numa feroz disputa de audiência, cada emissora querendo apresentar um novo detalhe, uma nova testemunha de quem não se vê o rosto, os familiares expostos ao país e ao mundo. São páginas e páginas todos os dias nos jornais, nas revistas semanais, com gráficos, com ilustrações e entrevistas de autoridades, de especialistas e populares, buscando o último suco de um assunto que normalmente não renderia mais que uma única manchete de capa.

Toda vez que o assunto aparece na televisão, baixo o volume ou mudo de canal. Viro a página dos jornais que trata do assunto sem lê-la. A morte virou espetáculo, dramatização, tragédia, novela que não é novela ao vivo e em cores para crianças, jovens, adultos, enfim todo mundo ver, julgar, pré-julgar, absolver, condenar.

Me pergunto: que sociedade é essa? Quais valores predominam hoje?

A vida das pessoas é devassada, vasculhada de alto a baixo. Os sentimentos mais nobres ou mais torpes são expostos, desnudados sem qualquer mediação. A privacidade acabou. Tudo é jogado a milhões de lares que absorvem os conteúdos, as notícias sem filtros, com os detalhes mais minúsculos, como se fosse um romance policial onde os diferentes elementos se encaixam, ou talvez não se encaixam, até se chegar ao grand finale que ninguém sabe qual é. Os familiares ou as pessoas próximas ao acontecido não podem se visitar porque os carros dos repórteres seguem atrás vasculhando cada pedaço de chão, cada portão aberto e fechado.

A novela que não é novela se perpetua por semanas, espremida entre novelas de verdade (ou de mentira), como se cada passo dado pela polícia fosse algo espetacular, algo que interessasse a todos os brasileiros e brasileiras, de repente mudasse a vida das pessoas, ou dissesse sobre o futuro da economia ou da política.

Psicólogos foram entrevistados sobre a reação de crianças nas escolas, que acompanham as notícias e a morte transformada em espetáculo. Há crianças que se mostram assustadas, dizendo que pais e mães não podem fazer mal aos filhos, não podem praticar violência. Cria-se um sentimento artificial de culpados e inocentes, de medos e temores, como se o caso de uma morte em São Paulo fosse algo de todos os dias, fosse praticado por todos ou como se este fato tivesse uma repercussão  e um alcance que atravessassem o conjunto da sociedade como paradigma.

Uma colunista de um jornal do Rio Grande do Sul comparou os acontecimentos de São Paulo com os de um assassinato de uma criança pobre jogada numa valeta nos arredores de Camaquã, interior do Estado. A menina classe média recebe todas as manchetes. A menina pobre e tantas outras, assassinadas pela fome, pela miséria ou violência diária, acabam esquecidas, não fazem parte do mundo do espetáculo. No máximo são citadas em alguma estatística.

As milhares de mortes na guerra do Iraque e a invasão permanente de um país parecem pouco ante um fato na cidade de São Paulo, que, por óbvio, é chocante e precisa ser apurado. Mas é preciso debater mais profundamente o papel da mídia num país cada vez mais midiático. Um dia transforma-se em herói (ou bandido) quem fica meses ‘preso’ dentro de uma casa para ganhar um milhão no final. Outro dia espetaculariza a morte como se tivesse acontecido dentro da nossa casa ou na casa do vizinho. A mídia deve informar com critérios e verdade. A mídia não pode ser o quarto, o quinto, o sexto poder a manipular os fatos, a selecionar os conteúdos e (de)formar corações e mentes.

Os valores dominantes devem ser questionados diariamente por todos nós, nas escolas, nas igrejas, nas organizações populares, nas famílias, nas comunidades, bem como as informações e as análises apresentadas como verdade absoluta ou como única versão. Não podemos nos achar impotentes e aceitar passivamente o que nos impõem de fora, ainda que às vezes pareçamos ou sejamos mesmo impotentes. Nem jamais render-se à lógica da espetacularização. É fundamental abrir espaços para formar, informar e explicar os mecanismos de como as idéias e as ideologias são construídas e difundidas.

Às vezes me dá impressão de que estamos diante de um monstro de mil tentáculos que nos agarra por todos os lados, nos seduz, nos comove e do qual não há como fugir. Mas aí penso que é preciso retornar à realidade, pisar firme no chão, amassar o barro da vida e da sobrevivência, olhar as pessoas nos olhos, reconhecer no outro aquele com quem vou construir algo junto, o futuro. Aí está a verdade e é por onde ainda é possível ter esperança.
 
* Artigo escrito por Selvino Heck, Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política