Você é um cristão preconceituoso?

Depois de discutir com uma colega na aula de Educação Física, Alecks- Batista foi abordado dentro dos muros do colégio particular onde estudava pelo pai da menina. “Ele me chamou de bichinha, viado e aidético”, lembra, que na época tinha 16 anos. A diretoria do colégio de classe média alta de Curitiba, no Paraná, não se manifestou sobre a agressão. “E eu me vi ali sozinho.” Hoje com 20 anos, estudante de Ciências Contábeis e gay assumido, Alecks ainda se lembra da sensação de isolamento, das piadinhas e da discriminação praticada pela maioria dos professores e alunos durante o Ensino Médio. Na sua época de escola, Alecks não era convidado para festas ou para jogos de futebol – na maior parte do tempo, circulava acompanhado apenas de amigas mulheres ou com dois outros colegas, também gays.

A situação vivenciada por Alecks não é exceção – investigações realizadas pela Unesco e também pelas ONGs Reprolatina e Pathfinder demonstram que há forte presença da homo-lesbo-transfobia (discriminação contra gays, lésbicas, transexuais e travestis) dentro das escolas brasileiras. Publicada em 2004, a pesquisa da Unesco revelou, por exemplo, que um quarto dos estudantes entrevistados não gostaria de ter um colega homossexual na mesma sala. De acordo com a pesquisa qualitativa realizada pela Reprolatina em 2009 em 11 capitais brasileiras, evasão escolar, tristeza, depressão e até casos de suicídio são observados entre a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) como consequência de um ambiente escolar homofóbico. “O ambiente escolar é em geral hostil para o exercício da diversidade sexual. Os professores não estão preparados e não têm compreensão maior da sexualidade e da homossexualidade”, explica a pesquisadora responsável pelo estudo, Margarita Díaz.

Kit anti-homofobia para combater o preconceito na escola
 
Diante do quadro, o Ministério da Educação, em parceria com entidades ligadas aos direitos humanos, produziu um kit de material educativo que será distribuído oficialmente para os professores de 6 mil escolas públicas a partir do segundo semestre deste ano. O projeto – batizado informalmente de “kit anti-homofobia” – é uma das ações do programa federal Escola sem Homofobia. Polêmico, o assunto já vem causando celeuma, principalmente na internet, onde grupos se manifestam acaloradamente a favor e (principalmente) contra o material, chamado de “kit gay” pelos seus opositores. “São temas muito estigmatizados e pouco compreendidos”, explica Vera Lúcia Simonetti Racy, uma das coordenadoras da criação do kit do material educativo.

Criado por uma equipe multidisciplinar, o kit completo é composto de caderno, pôster, carta ao gestor da escola, seis boletins (boleshs) e cinco vídeos, e levou cerca de dois anos para ser pesquisado, construído e validado. Apenas o roteiro de um dos filmes demorou oito meses para ser aprovado. (...)  “O que a gente quer é que o professor esteja atento a essa situação de homofobia. A escola precisa ser um espaço de respeito e de formação cidadã", conclui Carlos Laudari, presidente da ONG Pathfinder.

Preconceito velado. Será?
 
Realizada em Manaus, Porto Velho, Recife, Natal, Goiânia, Cuiabá, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba, a pesquisa da Reprolatina procurou investigar qual era o conhecimento e a atitude prática de educadores e alunos a respeito da homofobia nas escolas. Foram entrevistadas 1,4 mil pessoas, desde secretários da Educação até pessoas que fazem parte do cotidiano da escola, como merendeiras e porteiros, passando por diretores, coordenadores, professores e estudantes.

Foi detectado um ambiente altamente homofóbico – resultado semelhante em todas as cidades – uma realidade, porém, em geral negada pela comunidade escolar. Segundo Margarita Díaz, quando perguntados sobre a existência de homofobia na escola, a resposta dos participantes da pesquisa era quase sempre negativa. Entretanto, quando se começava a discutir sobre o que acontecia quando havia a presença de um menino gay ou uma menina lésbica na escola, os relatos mostravam muitas piadas e atitudes potencialmente ofensivas. Tais reações não eram catalogadas como homofobia. “Elas são enxergadas como brincadeiras. Na verdade, essa ‘brincadeira’ é, sim, uma reação homofóbica, mas ela está muito naturalizada”, explica Margarita.

A ausência de aulas sobre educação sexual que contemplem a diversidade também é apontada como um dos fatores que contribuem para a permanência da homofobia nas escolas. Segundo especialistas, a educação sexual disponível para a maioria dos estudantes é essencialmente heteronormativa, ou seja, reproduz um modelo que coloca a heterossexualidade como norma, o que acaba classificando outras manifestações de gênero, amor e sexualidade como desvios. “É uma educação sexual baseada no senso comum da sociedade, e não uma educação sexual antenada com as políticas públicas”, conta Margarita Díaz. Outro ponto percebido durante a pesquisa era o desconhecimento pelos educadores da existência de políticas públicas voltadas ao combate da homofobia.

Evasão escolar

Além de casos de violência física, uma forma quase invísivel de violência nas escolas – que inclui o isolamento, rejeição, brincadeirinhas e piadas – também costuma marcar os jovens homossexuais para a vida toda. “Especialmente na adolescência, a gente quer se enturmar. Quando você é rejeitado pelos seus pares, é um sofrimento horrível”, conta a terapeuta especializada em diversidade sexual e questões de gênero, Edith Modesto, que também é fundadora do Grupo de Pais de Homossexuais (GPH) e do Projeto Purpurina, que atende jovens de 14 a 24 anos. “Eles falam da escola com muita mágoa, lembram da discriminação, do desprezo e da rejeição.”

O quadro é ainda mais grave quando se analisa a situação de estudantes transexuais e travestis. Segundo especialistas, não há espaço para eles na escola. Além de o preconceito ser maior, questões como o uso do nome social na chamada ou até mesmo situações prosaicas como qual banheiro o jovem travesti deve usar pesam e acabam contribuindo para o abandono da escola. “Existe uma porcentagem dos nossos jovens que está sendo socialmente discriminada e forçada a assumir um papel sexual que não é dela”, lamenta Carlos Laudari. “A gente pretende que a escola seja uma escola cidadã, em que o aluno brasileiro aprenda a viver com a diferença.”

“Outro aspecto importante da necessidade de esse tema estar na escola é que certos jovens acabam saindo, porque o sofrimento é tão grande e o ambiente é tão agressivo que a criança ou o adolescente acaba desistindo de estudar. Os índices de evasão escolar são significativos para essa população”, explica Vera Lúcia. Segundo ela, o papel mais importante do kit anti-homofobia é informar e contribuir para erradicar a violência e o preconceito. “Na medida em que você trabalha esse tema na escola e consegue criar uma convivência melhor e mais respeitosa, isso acaba se refletindo nas relações sociais como um todo.”


* Artigo escrito por Tory Oliveira e publicado originalmente na Revista Carta Capital.