A religião é condição de uma sociedade fundada na justiça e na paz
Perguntar pela contribuição da teologia à paz e justiça sociais supõe colocar uma questão prévia: a contribuição da religião à sociedade. Perguntemos, pois: É possí-vel uma sociedade realmente humana sem religião alguma? Nossa resposta - ime-diata e direta - é: não.
Estamos consciente de que se trata de uma posição que está hoje longe de ser con-sensual. Ao contrário, até pouco tempo, a ala dominante da intelligentsia moderna achava que a religião, se não era nociva (posição dos marxistas clássicos), era pelo menos irrelevante (posição dos liberais). Mesmo entre os teólogos cristãos houve, a propósito, certa hesitação, apesar de a Igreja sempre ter sustentado, com firmeza, que não é possível organizar a sociedade dos homens prescindindo de Deus. Como diz o Salmo 127: "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalharão os construto-res. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigiarão as sentinelas" (v. 1).
Queremos aqui recuperar criticamente a verdade antiga de que a religião faz parte constitutiva de toda sociedade realmente humana. Essa convicção foi sustentada pela grande tradição clássica, não só cristã mas também pagã. Desta lembro apenas alguns testemunhos significativos:
• É conhecida a afirmação de Plutarco: "É mais fácil a um viajante encontrar uma cidade sem casas do que uma cidade sem templos".
• O velho Platão, que considerava o ateísmo como um crime de lesa-sociedade, asseverava solenemente nas Leis: "Se não é Deus que preside à fundação da Pólis, não se fugirá às mais graves desventuras" (l. IV).
• Cícero não tinha outra opinião: "Eu não sei se aniquilar a devoção para com os deuses não será destruir a boa fé, a sociedade do gênero humano e a mais excelente das virtudes, a justiça."
• Da tradição oriental, trago apenas uma afirmação de Confúcio, que é tanto mais expressiva quanto pouco religioso aparentava ser o Mestre chinês. Ensi-nava ele que, para haver um povo, são necessárias três coisas: o exército, o pão e a fé. Se fosse preciso dispensar uma, seria o exército: se uma segunda, seria o pão, mas nunca jamais a fé.
Claro, a tese da necessidade da religião para toda boa sociedade deu azo, na his-tória, a abusos vários, especialmente à intolerância para com os sem-religião e os "livres pensadores", devendo, por isso, ser adequadamente revista, como faremos logo adiante. Estamos, contudo, convencidos de que seu núcleo racional continua válido também para os dias de hoje.
Fundamento antropológico da religião
Qual é o fundamento da tese aqui defendida? É o próprio ser humano. Que este seja estruturalmente religioso é outra tese da grande tradição clássica, que a mo-dernidade contestou de forma cada vez mais forte. Hoje, porém, com a "volta do religioso" ou "volta ao religioso", torna-se mais fácil reconhecer esta verdade e seu caráter natural, racional, filosófico.
Efetivamente, o ser humano é "espírito". E espírito significa "abertura ao transcen-dente", aspiração ao Infinito, vontade de Eterno. Podemos também dizer, usando uma metáfora topológica inversa, que espírito é a dimensão de interioridade ou de profundidade que habita cada ser humano. Ora, que é a religião, em seu princípio, senão a resposta ao postulado da transcendência ou, se preferirmos, da profundi-dade, presente no coração de cada homem e de cada mulher?
Seja qual for o dinamismo humano que queiramos examinar, seja ele o desejo (Sto. Tomás), a inteligência (K. Rahner), a ação (M. Blondel), a dinâmica do psiquismo (C. G. Jung), ou qualquer outro, terminaremos sempre lá - no Transcendente. Podemos, pois, declarar: o divino faz naturalmente parte do humano.
Perguntemos agora se a religião seria também parte integrante da própria socieda-de. Como não? Porque feita de seres humanos, a sociedade é conseqüentemente religiosa. O homo religiosus não deixa de ser sempre um animal sociale et politicum. O conhecido teólogo Jean Daniélou insistiu muito nesta verdade em seu livro "Ora-ção, problema político". Não cansa aí de repetir que "o fato religioso... é um ele-mento constitutivo deste mundo. (...) Sem Deus o mundo se torna desumano. Deus faz parte da civilização." Para ele, "um mundo sem adoração é humanamente irres-pirável". Relembra várias vezes a bela metáfora de Giorgio La Pira, prefeito cristão de Florença dos anos 50 e 60: "Para ser humana, uma cidade precisa de chaminés e de torres de igreja."
Mesmo do ponto de vista sociológico, é possível afirmar-se o caráter irredutível e perene do fato religioso, como sublinhou É. Durkheim e como o afirmam hoje, por exemplo Andrew M. Greeley e Franco Ferrarrotti. Mas contra o grande sociólogo francês, temos que dizer sustentar que a religião não é primariamente uma exigência sociológica. É, mais em sua raiz, uma exigência antropológica. Só torna-se uma realidade social pela mediação do homem. Portanto, a religião não se enraíza no social, mas no humano. É só em seguida que ela vem a formar parte integrante do social.
Por conseguinte, a religião, em sua "arché" ou princípio, não é da ordem do mera-mente "opcional", como o é a escolha da própria mulher ou marido, da profissão ou de um time de futebol. Ela é uma dimensão ontológica e, por isso, impreterível de todo ser humano, também em sua existência social, como veremos. O que é "opcio-nal", sim, são as formas que a dimensão religiosa assume concretamente, ainda que se trate de formas substitutivas (como no caso das "religiões seculares": R. Aron) e mesmo de formas contrárias ou invertidas (como no caso paradoxal do ateísmo).
Constitui, para nós um outro equívoco afirmar que a religião seria "opcional" porque Deus seria simplesmente da ordem da graça. Mas não. O que pertence à esfera da graça e, portanto, à ordem sobrenatural, é a revelação em Jesus Cristo e a fé que lhe corresponde. Deus ou, melhor, o Divino pertence à ordem natural e é, como tal, parte integrante do bem comum da realidade humana e social.
Ademais, a graça, especificamente o "divino sobrenatural", só pode se elevar jus-tamente sobre a base do "divino natural". Este é testemunhado pelo fenômeno reli-gioso em suas formas mais variegadas. Já o "divino sobrenatural" resplandece po-derosamente na fé cristã. Não se podem confundir estes dois níveis, como quer uma teologia apressada, cancelando sem mais a linguagem "natural/sobrenatural".
Por conseqüência, o poder estatal, embora não professe e nem deva professar ne-nhuma religião em particular, pode e deve promover positivamente a liberdade reli-giosa e suas manifestações legítimas como um valor qualificante de uma sociedade. Que seriam, de fato, as sociedades ocidentais sem o Cristianismo e o Judaísmo, as sociedades do Oriente médio sem o Islã, a sociedade indiana sem o Hinduísmo, o Sudeste asiático sem o Budismo e assim por diante?
A religião no processo da modernidade
A análise da história moderna nos oferece a contra-prova mais eloqüente da neces-sidade especificamente social da religião. A experiência histórica mais impressio-nante neste sentido nos foi oferecida pelo "socialismo real". Este empreendeu a gi-gantesca tentativa de criar uma "nova sociedade" entre cujos traços se encontrava precisamente a ausência total da religião. Tratava-se praticamente de construir, a ferro e a fogo, uma "sociedade atéia". Eis como se expressou, de forma eloqüente, o Card. Cassarolli, Secretário de Estado de Paulo VI, referindo-se ao mundo comu-nista, onde exerceu sua habilidosa ação diplomática:
"Era a sombra da maior e mais radical revolta que a história tenha co-nhecido contra 'tudo o que se chama ou é venerado como Deus'. Re-volta vinculada ao maior e mais radical - também esse - projeto de transformação da sociedade humana, de injusta para justa, de infeliz para feliz: uma utopia a se impor também com a força, se necessário (e se o foi!...)."
Somos, hoje, todos, testemunhas vivas do resultado falimentar desse esforço histórico por construir uma sociedade a-religiosa. O Estado ateu aparece aos nossos olhos como a ilustração mais gigantesca desta verdade: "A morte de Deus é a morte do homem". É o que já tinham afirmado explicitamente, no começo do século próximo passado, tanto o grande escritor francês A. Malraux, como o filósofo e teólogo russo N. Berdiaev.
Mas é preciso também se perguntar se a "morte de Deus" não significa finalmente a morte da esperança por uma "sociedade com rosto humano". João Paulo II, na aná-lise que faz, na Centesimus Annus (1991), do desabamento do "socialismo real" - do qual foi um dos protagonistas, talvez o maior - depois de citar as causas econômicas e políticas do fenômeno, conclui:
"A verdadeira causa das mudanças está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo. (...) O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração" (n. 24).
Hoje aparece sob nova luz e soa tremendamente persuasiva a profética afirmação de Paulo VI na Populorum progressio, citando o teólogo Henri de Lubac:
"O homem pode organizar a terra sem Deus, mas 'sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo (isto é, ateu) é humanismo desumano'" (PP 42).
Devemos, todavia, acrescentar, que o ateísmo marxista foi apenas a "forma hard" do ateísmo moderno. Ao lado dele, existiu e existe também a "forma soft" - a do liberalismo. Esse não eliminou totalmente a religião. Realizou apenas a "repressão do divino", na expressão de Viktor Frankl, concedendo-lhe um espaço cada vez menor na vida pessoal e social. Foi assim que as sociedades liberais acabaram no ateísmo prático.
Hoje, elas se organizam e vivem, como dizia Hugo Grotius, etsi deus non daretur (como se Deus não existisse). O fato é que o resultado final da ideologia liberal foi a instauração da primeira e única civilização que se desenvolveu em sentido puramente material: o Capitalismo. Esse se constitui, segundo R. Guénon, numa monstruosidade histórica ou, pelo menos, numa anomalia cultural. De modo se-melhante, referindo-se, em especial, à disjunção entre vida social e religião, declara R. Garaudy:
"Afora este irrisório entremeio da história humana que começa com a Renascença européia, isto é, com o nascimento simultâneo do capita-lismo e do colonialismo, em todas as culturas, em todos os continentes e em todos os séculos, mística e política não fazem senão uma coisa só."
Mas a ebulição religiosa, que hoje em dia toma conta da cultura, ora globalizada, permite redimensionar o sentido social da Religião. Por entre os dois extremos que caracterizam atualmente o movimento religioso, que são, por um lado, o misticismo intimista e sincretista, e, por outro, o fundamentalismo totalitário, abre-se o caminho da renovação das grandes Religiões, enquanto buscam manter sua identidade de fundo e ao mesmo tempo adaptar-se criativamente ao novo momento histórico.
Efetivamente, não se trata mais de restaurar a forma antiga de presença da religião na sociedade: presença coercitiva, orgânica e maciça, como no modelo de "cris-tandade". Na sociedade moderna, a religião pede um modo de presença diferente - uma presença de tipo sacramental ou vicário, pela qual ela aparece como pars pro toto. Se ela não é de todos, ela é para todos.
Em palavras mais diretas: não é necessário que a sociedade, por inteiro, seja religi-osa, mas que ela dê, pelo menos, um espaço adequado à religião. Falando mais simplesmente: Deus não precisa morar absolutamente em toda a casa, mas precisa, sim, ter a sua casa no meio das casas dos humanos. As metáforas do sal e da luz, usadas por Cristo (cf. Mt 5,13s), exprimem bem o papel da religião hoje: ela não precisa ser tudo, mas precisa sobre tudo difundir seus benefícios. Nessa linha, atinha razão polemista francês do século XIX, Louis De Bonald, ao sentenciar: "O homem que não tem religião vive protegido pela religião dos outros".
Integrando as lições da modernidade.
Embora a modernidade, em seu processo histórico, tenha-se mostrado equivocada e mesmo injusta para com a religião, ela não deixou, contudo, de ter suas razões. Poderíamos dizer que acertou no varejo, apesar de ter errado no atacado. Reco-lhamos aqui seus acertos em relação à questão religiosa, perguntando o que pode-mos aprender da modernidade sobre o modo da presença social da religião.
1. A primeira e grande lição que nos dá a modernidade é a da liberdade religiosa. É uma aquisição hoje pacifica de que a religião deve ser uma opção absolutamente pessoal e livre. A própria separação Igreja - Estado é positiva também para a reli-gião, enquanto esta fica assim juridicamente imunizada das intromissões do poder político.
Contudo, tem sido criticado, com razão, o lugar por demais estreito que a mentali-dade moderna adjudica à religião - o espaço da privacidade. Para os liberais de hoje, reféns de uma antropologia individualista, religião é simplesmente uma "ques-tão de consciência", entendida em sentido privatista.
Por certo, a religião não pode ser uma questão pública no sentido de estatal (e nisso os liberais têm razão), mas também não pode ser puramente privada (e nisso eles não têm razão). A religião, especialmente a cristã, reivindica uma presença também pública no sentido de social. Aliás, o caráter público e social da religião é reconhe-cido pela própria Declaração dos Direitos humanos em seu artigo XVIII:
"Todo homem tem direito... de manifestar sua religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelas observâncias, isolada ou cole-tivamente, em público ou em particular".
2. Uma segunda e importante lição que podemos tirar da modernidade é a laicida-de do Estado moderno. Isso significa que a religião não pode estar submetida ao arbítrio do poder público. Nada, pois, de religião imposta, como foi na história do Ocidente, com o longo período da "cristandade", contra a qual se levantou, a bom direito, a razão moderna.
De fato, no regime de cristandade, a fé era mantida e imposta à sociedade mediante o poder de Estado. Cristandade é, em suma, o "Estado cristão" garantindo uma "sociedade cristã". Percebemos hoje o quanto esse regime fazia violência à liberda-de humana, bem como à natureza voluntária da decisão de fé. É claro, hoje, aos nossos olhos, que, para se afirmar socialmente e se expandir pelo mundo, a fé só conhece uma espada: não a de César, mas tão-somente a "espada da Palavra", de que falam as Escrituras (cf. Is 49,2; Ef 6,17; Hb 4,12; Ap 1,6; 9,15).
Na verdade, a cristandade representava apenas uma forma de Estado - a cristã. Pois os Estados pré-modernos eram praticamente todos Estados religiosos: o egípcio, o grego, o romano, o judeu, etc. E ainda hoje, em largas faixas do mundo muçulmano, sustenta-se a confessionalidade do Estado, com a instauração do regime jurídico-religioso da sharia. Foi graças às lutas dos grupos laicos, muitas vezes contra a própria Igreja, que a índole a-confessional do Estado, correlato da liberdade religiosa, tornou-se uma conquista definitiva da consciência moderna.
3. A terceira lição positiva que podemos aprender da modernidade decorre da pró-pria liberdade religiosa: é o pluralismo de crenças. Esse inclui a opção de professar uma religião qualquer e mesmo de não professar nenhuma.
Pluralismo religioso, porém, não significa que todas as religiões se equivalham, como quer certo relativismo de cunho filosófico-religioso. Significa antes que, do ponto de vista da sociedade e do Estado, todas as religiões gozam de direitos e deveres iguais. O pluralismo religioso, portanto, concerne apenas às formas sociais da reli-gião e não aos seus conteúdos doutrinários, cuja verdade é deixada ao mútuo con-fronto e à força argumentativa e testemunhante de cada confissão.
4. A quarta lição que nos dá a modernidade é a secularização do sistema social em relação ao sistema religioso. Há muitas e desencontradas interpretações desse fenômeno. Em vários de seus documentos, o Vaticano II entende a teoria da seculari-zação sob a expressão de "autonomia das realidades terrestres". Aí o Concílio a-presenta, da secularização, uma interpretação bem articulada e bem balanceada.
Segundo o discernimento conciliar, a secularização designa um fenômeno duplo. Quando entendida como "justa autonomia" da sociedade, em sua organização e em suas funções próprias, a secularização atesta uma verdade que pode e deve ser acolhida. Trata-se, efetivamente, de reconhecer o papel das "causas segundas" no âmbito social. É o que mostram sobejamente as ciências sociais. Entendida, porém, não como "autonomia relativa", mas como a emancipação total da sociedade a respeito de toda e qualquer referência religiosa, a secularização não passa de uma ideologia, que exprime e favorece um falso processo: o secularismo.
Poder-se-ia, entretanto, perguntar se, para a sociedade moderna, libertada da tu-tela religiosa, a religião seria ainda uma necessidade vital. Não teria ela, aí, apenas uma importância "marginal" ou mesmo residual, como quer toda uma série de sociólogos modernos, como Th. Luckmann, M. Gauchet e D. Hervieu-Léger?
Para responder a esta delicada questão, parece-nos útil distinguir, como faz J. Ha-bermas, entre a sociedade entendida como "sistema" (System) e a sociedade enten-dida como "mundo vivido" (Lebenswelt). Assim, se pensarmos a sociedade como "sistema autônomo", que, como diz o Vaticano II, "goza de leis e valores próprios e serem conhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem" (GS 36,2), podemos estar de acordo: a religião aparece como secundária. De fato, não é mais a Catedral o centro arquitetônico da cidade moderna, mas o Mercado e o Estado. Essas duas instituições são seu "eixo estruturante" e não mais o sistema religioso.
Mas se pensarmos a sociedade como "comunidade viva", composta por pessoas concretas, então a religião continua sendo um valor tão central como sempre foi. Se não o é de facto, não deixa de sê-lo de jure. Apesar do que digam ou queiram os doutores e senhores da modernidade, a religião, que lida com o incondicional, o central e o supremo, não pode se resignar a uma posição meramente subalterna na sociedade de hoje. Volens nolens, sciens nesciens, o Transcendente permanece ne-cessariamente o horizonte inescapável e sempre aberto de qualquer sociedade que se queira realmente humana.
Certo, o sistema social moderno "não precisa da hipótese Deus" para se explicar em seu funcionamento imediato - não mais que qualquer outro sistema criacional, desde o atômico até o estelar, passando pelo biológico. Contudo, os seres humanos, que lidam com qualquer um desses sistemas, inclusive com o sistema social, esses, sim, é que precisam da "hipótese Deus" para se orientarem a contento no mundo e encon-trarem um sentido derradeiro para sua existência.
* Texto escrito por Frei Clodovis M. Boff, osm.