Caritas in veritate: Jean-Yves-Calvez, L.A. Gómez de Souza e Plínio de
A IHU On-Line preparou para a edição desta semana um breve dossiê sobre a mais recente encíclica do Papa Bento XVI, intitulada Caritas in Veritate. Publicado no último dia 07 de julho de 2009, o documento é dedicado aos temas da economia, das finanças, do dinheiro e do trabalho. Comentam a encíclica o jesuíta Jean-Yves-Calvez, o sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza, e o economista Plínio de Arruda Sampaio. Confira.
1) A encíclica de um Papa que confia na sociedade civil
Na opinião do jesuíta Jean-Yves-Calvez o princípio geral da nova encíclica de Bento XVI é de que "a economia necessita de ética"
Desenvolvimento, meio ambiente, solidariedade internacional, situação demográfica do mundo, migrações, necessidade de ética na economia, necessidade de uma nova gestão dos recursos raros em benefício de todos, relação entre mercado e dom, fraternidade e revalorização do papel do Estado. Todos esses são temas discutidos na mais recente encíclica do Papa Bento XVI, intitulada Caritas in veritate. Após ler o documento, o padre jesuíta Jean Yves-Calvez aceitou responder algumas questões à IHU On-Line, por e-mail, onde escreveu que "tudo isto é (...) consequência da ‘crise’", embora seja preciso observar, continua ele, "que a crise não é o tema central, como esperavam muitos (decepcionados?); é antes, por alusão, que isso entra em questão". Para Calvez, todos os pontos levantados por Ratzinger nesta encíclica constituem "um encorajamento a tomar, sem hesitar, as medidas intervencionistas e corretivas que deveriam impedir o retorno de semelhantes crises".
Jean-Yves Calvez é um jesuíta com uma trajetória de vida muito interessante e repleta de reflexão sobre os grandes problemas sociais da humanidade. Ele, profundo conhecedor do marxismo, é autor de uma obra clássica sobre O Capital de Karl Marx. É autor de inúmeros livros, entre eles, foram publicados no Brasil A Economia, o Homem, a Sociedade (Loyola, 1995) e Política. Uma Introdução (Ática, 1997). Calvez é um proeminente especialista no Ensino Social da Igreja.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as ideias centrais da nova encíclica de Bento XVI (Caritas in veritate)?
Jean-Yves Calvez - São tratados diversos temas. No início, pelo menos, o principal é o desenvolvimento. O que pode provocar surpresa, sabendo-se que a problemática globalização dos economistas liberais se desenvolveu, com frequência, em contradição às políticas voluntaristas de desenvolvimento: era-lhes oposto o caráter automático dos avanços das economias sob o impacto da abertura das fronteiras. O papa rende ao desenvolvimento suas cartas de nobreza; ele revaloriza, aliás, a grande encíclica do desenvolvimento, a Populorum progressio, e seu autor, o Papa Paulo VI, muito pouco citado na época do pontífice precedente, João Paulo II. Boa nova, dizem os defensores do desenvolvimento. Seguramente há, a seguir, toda uma série de outros assuntos: o meio ambiente, a solidariedade internacional ("a colaboração na família humana"), a situação demográfica do mundo, as migrações, a necessidade de ética na economia, a necessidade de uma nova gestão dos recursos raros em benefício de todos, dos mais pobres em particular. A relação entre mercado e "dom" (cap. III) é um tema que chama a atenção, associado à questão da fraternidade que pode e deve se desdobrar na sociedade civil, na qual o papa tem confiança, apoiando a revalorização do papel do Estado ("cuja função parece destinada a crescer"). Tudo isto é, poder-se-ia dizer, consequência da "crise": e o é, indiscutivelmente, embora seja preciso observar que a crise não é o tema central, como esperavam muitos (decepcionados?); é antes, por alusão, que isso entra em questão. De outra parte, "o amor (a caridade) é tudo", diz o papa, "na e segundo a verdade", ou seja, segundo a estrutura das coisas e a natureza do homem; além da estrutura, o amor não é senão a lancinante dor "emocional".
IHU On-Line - Qual a importância desta encíclica no contexto atual de crise econômica e social?
Jean-Yves Calvez - O relevo de todos os pontos que acabo de evocar é um encorajamento a tomar, sem hesitar, as medidas intervencionistas e corretivas que deveriam impedir o retorno de semelhantes crises. Mas isso não é dito com toda essa nitidez.
IHU On-Line - Que respostas a encíclica oferece para a crise moral da financeirização?
Jean-Yves Calvez - Aqui o papa não se engaja no detalhamento de medidas precisas, que, de resto, não podem resultar de um mero reerguimento "moral" dos homens. O princípio geral é, no entanto, nitidamente colocado, contra todos aqueles que gostariam de isolar a economia da moral: "A economia necessita de ética".
IHU On-Line - Qual é a novidade que esta encíclica (Caritas in veritate) traz em relação à Populorum Progressio?
Jean-Yves Calvez - É claro que a nova encíclica trata dos problemas do desenvolvimento num novo contexto, justamente o da globalização - querendo isto expressar um contexto de espírito mais liberal do que do tempo da Populorum progressio, que torna provavelmente mais difícil precisamente a ação para o desenvolvimento. A nova encíclica fala também num contexto de escassez, muito sublinhado, pelo menos se tratando dos recursos energéticos - é verdade que o papa diz no mesmo instante: "Há lugar para todos sobre a terra...".
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2) A caridade na verdade: primeiras impressões
Autor de Uma fé exigente, uma política realista (Rio de Janeiro: Educam, 2008), o sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza analisou, a pedido da IHU On-Line, a encíclica Caritas in veritate, publicada por Bento XVI, na terça-feira, 07-07-2009. Para o autor, o texto é longo, repetitivo, "com a ânsia de tratar de tudo e com afirmações muitas vezes ditas de maneira absoluta". Além disso, acrescenta, a encíclica "entra em contradição com a dimensão histórica referida anteriormente, e em casos como os da reprodução, apenas repete o tradicional". A justificação para tal modelo, assegura Gómez de Souza, "tem muito a ver com a maneira de pensar do atual papa, que tem horror aos riscos do relativismo e fica num plano teórico e doutoral, muito mais do que pastoral".
Luiz Alberto Gómez de Souza é graduado em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pós-graduado em Ciência Política, pela Facultad Latino-Americana de Ciencias Sociales (Flacso), de Santiago do Chile, e doutor em Sociologia, pela Universidade de Paris Sorbonne Nouvelle. Atualmente, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes. De sua vasta obra bibliográfica, destacamos A JUC: os estudantes católicos e a política (Petrópolis: Vozes, 1984).
Confira o artigo a seguir.
Esta encíclica de Bento XVI quer ligar-se diretamente à outra encíclica de Paulo VI, Populorum Progressio, de 1967, que considera a Rerum Novarum da época contemporânea e toda a primeira parte é dedicada a ela. Porém, não quer apenas repetir - ainda que o faça de maneira longa demais. Fala de "um único ensinamento coerente e simultaneamente novo" (12). Vê uma dimensão histórica no "patrimônio" da doutrina social da Igreja, para enfrentar novos problemas que não existiam ainda tão nítidos na fase imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II. Nisso parece seguir a idéia do teólogo inglês J.H. Newman, que o papa estima particularmente, sobre o desenvolvimento da doutrina, que se refaz no tempo e vai mudando. Assim há "coisas novas": novo contexto econômico comercial e financeiro internacional, em grande crise em nossos dias (24), novos problemas com os fluxos migratórios (21,62), mobilidade laboral associada à desregulamentação (25), aspectos novos do desemprego (25), o problema dos recursos energéticos não renováveis (49), a interação das culturas com a globalização (26). Indica como os estados-nação são ultrapassados por essa globalização. Na linha do que João XXIII indicou na Pacem in Terris, acena para uma autoridade política mundial no futuro (67), na interdependência mundial (33), mas vê os riscos de novas formas de colonialismo e dependência (33) e o perigo de um poder universal monocrático, sem as dimensões da subsidiariedade, da descentralização e da democracia (57). Refere-se a um quadro de desenvolvimento policêntrico, onde pode crescer a riqueza, mas aumentam as desigualdades (22).
Um documento contraditório
É um longo documento, muitas vezes repetitivo e exageradamente referido a outros atos do magistério dos últimos papas, de leitura necessariamente lenta, com a ânsia de tratar de tudo e com afirmações muitas vezes ditas de maneira absoluta. Entra em contradição com a dimensão histórica referida anteriormente, e em casos como os da reprodução, apenas repete o tradicional. Talvez isso se deva à inversão que propõe entre caridade e verdade. São Paulo, na Epístola aos Efésios, fala de "verdade na caridade" (Ef. 4,15): seria na relação entre as pessoas que iria se desocultando a verdade. Bento XVI vê a relação em sentido contrário, a caridade brotando de uma verdade que lhe é anterior e de certa maneira fixa. Isso vai dificultar o diálogo com não católicos, ao qual nos referiremos mais adiante e há uma dimensão de certa onipotência, num magistério mais inclinado a saber do que a escutar. Isso tem muito a ver com a maneira de pensar do atual papa, que tem horror aos riscos do relativismo e fica num plano teórico e doutoral, muito mais do que pastoral.
Talvez tivesse sido melhor um texto mais curto, com interrogações abertas e pistas de ação nesse campo da justiça social e da caridade, de fácil acesso às comunidades cristãs. Mas isso é um hábito neste tipo de documento e inclusive nas "orientações" dos episcopados. Particularmente, este papa fala mais como teólogo do que como pastor.
Polêmicas
Na área da sexualidade e da reprodução repete o que vem de Paulo VI na Humanae Vitae e de João Paulo II. Tem uma atitude de defesa diante das "delicadíssimas" questões de reprodução in vitro, clonagem, eutanásia, investigações com células-tronco (51) e uma crítica, com certa dose de razão, ao hedonismo e à sexualidade apenas como fonte de prazer (44). Mas também, na linha que percorre todo o documento, de não querer simplificar, poderia ter, além disso, se referido aos aspectos positivos do prazer e da sexualidade amorosa como alteridade.
Indica que a Igreja não tem soluções técnicas, mas aponta orientações e tenta iluminar a realidade (13). Nesse sentido, em frases às vezes perdidas num contexto demasiado totalizador, traz afirmações interessantes. Assim, vai valorizar a sociedade civil (24) e tem parágrafos muito ricos sobre o dom e a gratuidade: "O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência" (34).
Também se refere à saúde ecológica da terra (32) e à democracia econômica (38). Indica que, mais além da relação privado e estatal, há experiências de economia solidária na sociedade civil (39), que chama de "organizações produtivas que perseguem fins materialistas e sociais", além de lógica do lucro (38). Insiste numa orientação personalista e comunitária (42) e me faz pensar aí em Emmanuel Mounier.
Religião
Ao mesmo tempo em que fala de um "humanismo cristão" e da necessidade de toda a realidade estar iluminada por Deus, vai reconhecer que "outras culturas e outras religiões ensinam a fraternidade e a paz", criticando ao mesmo tempo o sincretismo e as crenças mágicas (55). Mas, o que é importante, chama a "unir esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade de outras religiões e não crentes" (57).
Há uma interessante observação entre razão e fé: "a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência, enquanto a fé sem razão corre o risco de alheamento da vida concreta das pessoas" (74).
Alternativa ao capitalismo
Vale notar que em nenhum momento se refere ao sistema capitalista, mas aos problemas mais fundamentais do mercado, que para Bento XVI tem elementos positivos e negativos: "deixado unicamente ao princípio da equivalência do valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar coesão social" (35). Também afirma que não existe o mercado em estado puro (36). Mas um mercado que só busca o lucro e aumenta as desigualdades não está na lógica do capitalismo atual? Como ir além, na busca de outras relações de produção que não as do sistema vigente? Talvez o documento considere que isso são indicações técnicas e queira ficar ao nível das grandes orientações. Mas é interessante que se coloca, na prática, em direção contrária a uma teologia da prosperidade, das raízes do capitalismo e de uma mentalidade neoliberal.
Fala em evitar mecanismos funestos de uma civilização tecnológica globalizada. Insiste no princípio da subsidiariedade, que percorre todo o ensinamento social da Igreja, muito importante nestes tempos de mundialização, onde há que saber articular o local e o global. Vê as relações humanas em analogia com a Trindade, na unidade de um só Deus e na dimensão de relação entre as pessoas trinitárias.
Enfim, garimpando o texto, encontramos elementos bastante relevantes. Faltaria, como disse antes, ao lado dele, um documento mais ágil, pastoral e curto, que levasse esse ensinamento e linhas de ação às comunidades dos fiéis, para não ficar circunscrito aos especialistas. E os não católicos precisariam sentir que são realmente chamados ao "acordo entre crentes e não crentes" (79) e não postos diante de um discurso já pronto e totalizante. Nestes tempos de transição histórica, de novos paradigmas, de mudanças profundas e de um necessário pluralismo, essa atitude e esse estilo seriam da maior importância.
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3) Mais do mesmo?
"As medidas sugeridas fazem parte do receituário destinado a fazer a economia capitalista funcionar", diz Plínio de Arruda Sampaio à IHU On-Line, referindo-se a encíclica Caritas in veritate, publicada pelo Papa Bento XVI na última semana. Crítico ao texto, o economista enfatiza que "nada é dito a respeito da necessidade de superar o modo de produção capitalista, cuja lógica interna é o fator determinante da crise".
Para ele, a Igreja católica não tem liberdade para fazer os apontamentos descritos na encíclica. E justifica: "Só poderá adquiri-la, quando surgir um Papa capaz de pôr em prática o conselho de Dom Hélder Câmara a Paulo VI: ‘Livre-se do Vaticano, entregue-o para a Unesco e vá morar, como São Pedro, na periferia de Roma.’" O artigo a seguir foi produzido com exclusividade para a IHU On-Line desta semana, e expressa a opinião do economista e do Correio Cidadania, onde atua como diretor.
Plínio de Arruda Sampaio é graduado em Direito, pela Universidade de São Paulo. Participou da Ação Popular, organização católica com orientação de esquerda. Foi relator do projeto de Reforma Agrária, que integrava as Reformas de Base do governo João Goulart. Criou a Comissão Especial de Reforma Agrária e propôs um modelo de reforma que indignou os grandes latifundiários do Brasil. Obteve o título de mestre em Economia Agrícola, nos Estados Unidos, onde se exilou durante a ditadura. Ao retornar ao Brasil, se engajou na campanha pela abertura do regime militar e pela anistia dos condenados políticos. Filiou-se ao PT em 1980, onde foi autor do estatuto do partido. Em 2005, desligou-se do PT e aderiu ao PSOL.
Confira o artigo.
As encíclicas são preparadas pelos assessores do Papa, obviamente, segundo suas instruções. Caritas in veritate, a recente encíclica de Bento XVI não foge a esse modelo. O texto evidencia que os assessores econômicos do Papa não ultrapassaram o "main stream" das análises voltadas para defender o capital nestes tempos de aguda crise econômica mundial.
As medidas sugeridas fazem parte do receituário destinado a fazer a economia capitalista funcionar. Nada é dito a respeito da necessidade de superar o modo de produção capitalista, cuja lógica interna é o fator determinante da crise e, portanto, dos sofrimentos que a Encíclica aponta.
Encíclicas são cartas que o Papa envia aos cristãos e não cristãos de todo o mundo, expondo a doutrina social da Igreja, chamadas de "encíclicas sociais". Elas fazem parte de um longo processo de reconciliação do Vaticano com o mundo que surgiu da Revolução Francesa. Trata-se de reparar - aos pouquinhos e cautelosamente - os estragos que furibundas encíclicas como Mirari Vos, Syllabus , Quanta Cura, Pascendi Domini causaram no relacionamento da Igreja com a república burguesa, com a classe operária e com a sociedade moderna.
Caritas in Veritate é um passinho a mais nessa sequência de encíclicas iniciadas com a Rerum Novarum, em 1891. Porém, não mais do que isso. A linguagem continua prolixa e ambígua; a idéia de "cristandade" subjaz tanto ao diagnóstico como às recomendações.
Mas, pelo menos, contém críticas ao egoísmo das nações desenvolvidas; às leis de proteção da propriedade intelectual; ao abandono das redes de proteção social. E tem também o mérito de não incluir, como as encíclicas precedentes, nenhuma condenação explícita do socialismo e do comunismo.
Neste sentido, tendo em vista as últimas posições da Igreja vaticana, a encíclica constitui um avanço. Falta, porém, avançar muito mais para libertar essa fala do Papa das limitações impostas pelas "razões de Estado" e, portanto, possibilitar um dizer mais claro, menos prolixo e menos cheio de circunlóquios, a respeito das causas dos males que aponta.
Pobreza, fome, endemias, corte nos direitos trabalhistas, pressões econômicas sobre os países subdesenvolvidos, poluição do meio ambiente - todos esses males são causados pela lógica do sistema do capital e não serão abolidos apenas com apelos à generosidade das pessoas.
A Igreja vaticana não tem liberdade para dizer essa verdade. Só poderá adquiri-la, quando surgir um Papa capaz de pôr em prática o conselho de Dom Hélder Câmara a Paulo VI: "Livre-se do Vaticano, entregue-o para a Unesco e vá morar, como São Pedro, na periferia de Roma".
* Textos do esuíta Jean-Yves-Calvez, do sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza, e do economista Plínio de Arruda Sampaio.
Fonte: Adital.