Faleceu no dia 20 de fevereiro Marcella Althaus-Reid, teóloga argentina, professora na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Infelizmente nenhum dos seus livros foi publicado no Brasil, por isso ela não era muito conhecida entre nós. Mas, sua morte é uma grande perda para aquelas e aqueles que buscam na teologia uma forma de ver e compreender criticamente a nossa realidade social e pessoal.
Ela se tornou internacionalmente conhecida com o seu livro "Teologia indecente", publicada em 2000. Para ela, "decente" é a ideologia do senso comum, aquilo que a ideologia dominante considera como normal. Por isso, o desmascaramento das ideologias é chamado de indecente por todos/as que não conseguem imaginar a vida e a realidade para além do que está estabelecido. Em uma coletânea dedicada à Teologia da Libertação Latinoamericana, Marcella diz que "Indecente é o termo que nos lembra que o primeiro ato de amor da Teologia da Libertação foi o de criar problemas para o status quo, e que foi parte de um discurso transgressivo e provocativo arduamente contestado" (Latin American Liberation Theology: The Next Generation, p. 25)
Assumindo-se como uma teóloga inserida no interior dessa tradição teológica que nasceu na América Latina, ela criticou a TL - ou a setores mais conhecidos da TL- por ser relutante em ouvir as vozes e histórias de sofrimentos que não se encaixavam na definição estabelecida do "pobre" e do "outro". Em outras palavras, o que a Marcella criticou foi o processo de "normatização" da TL, processo pelo qual a TL acabou criando normas que definem o que é aceito como "decente". Não somente em termos de sexualidade e gênero, campos em que ela é imediatamente associada, mas também na discussão sobre como compreendemos a noção de libertação social ou a luta pela libertação dos pobres. Após mais de 40 anos, a comunidade da TL criou também um tipo de "magistério" que define o que é aceitável ou não, ou em termos da Marcella, o que é decente ou indecente.
Não estou dizendo que ela pregou uma teologia sem nenhum limite que a definisse como de libertação, pois sem nenhum tipo de limite não é possível diferenciar uma teologia da outra. O que ela criticou foi os limites da TL que são produtos das ideologias que carregamos e reproduzimos mesmo que inconscientemente. Para ela, a noção de gênero e sexualidade construída de modo ideológico tem sido considerada normal e normativa. "O problema com normalidade na América Latina é ela foi construída através da aliança forjada, durante séculos, na história da exploração do nosso continente".
Ela foi uma teóloga feminista que foi além da discussão do gênero e colocou a sexualidade no centro das suas reflexões, sem perder de vista a questão econômica. O seu livro "Queer God" (quando da sua estada no Brasil uns anos atrás, ela conversou sobre a melhor tradução para português deste título e chegou à conclusão que seria "Deus transviado"), que provocou também um grande impacto no mundo teológico, é uma tentativa de "redescobrir Deus fora da ideologia heterossexual que tem dominado a história o cristianismo e da teologia". Encontrar Deus para além da nossa interpretação de Deus marcada pela ideologia e experiências que apresentam a heterossexualidade como o normal e normativo.
O que ela propõe é mais do que simplesmente a ordenação das mulheres, o uso da linguagem inclusiva ou a aceitação dos gays nas comunidades cristãs. Para ela, "A simples dinâmica de aceitar ou ser tolerante com outros/as implica que há uma definição ideológica central do que é certo e, nesse caso, uma normalidade sexual que não pode ser desafiada. O fato é que qualquer discurso de aceitação na teologia denuncia hegemonia. Aceitar ou receber são gestos de incorporação, mas não de boas-vindas ao diferente".
Para muitas pessoas que tomam contato com o pensamento da Marcella, o que ela propõe vai muito além do que seria aceitável. Mas nisso consiste exatamente a grande contribuição da Marcella. Ela, com seu jeito explosivo de expor suas idéias, em público ou nos seus textos, nos lembra sempre que "o caminho da teologia (especialmente as que buscam ser de "libertação", acréscimo de J.M.S.) não é de continuidade, mas de não-conformismo".
Ela vai fazer muita falta!
* Artigo escrito por Jung Mo Sung - Professor de pós-graduação em Ciências da Religião.