A sinfonia ao amor

 

Meditação de dom Ervin Kräutler, bispo do Xingu: A sinfonia ao amor 

 


 Oferecemos aos leitores de nossa revista mais uma das meditações que dom Erwin Kräutler C.PP.S, bispo do Xingu, dirigiu aos bispos no dia do retiro durante a 46ª Assembléia Geral da CNBB em Itaici (5 de abril de 2008). São palavras eloqüentes que brotam do chão da vida de um pastor totalmente entregue à causa dos pobres e que por esta causa é perseguido e corre risco de vida. O texto que segue é a segunda parte da meditação sobre 1Cor 12,31 – 14,1a.

 

O Hino ao Amor é geralmente circunscrito ao capítulo 13 da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. No entanto, o versículo anterior ao capítulo 13 é introdutório e faz compreender melhor o que segue: “Aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” (1Cor 12,31). O caminho 1 de que Paulo fala, são as normas de vida em Cristo Jesus que ele ensina “em toda parte, em todas as Igrejas” (1Cor 4,17). A esta introdução corresponde também o imperativo enfático na conclusão do hino no versículo 14,1a: “Procurai o amor” ou então melhor traduzido, “empenhai-vos pelo amor” 2 . Neste sentido o Papa Bento XVI insiste em afirmar que 1Cor 13 deve ser a Magna Carta de todo o serviço eclesial, sem dúvida, de modo especial, do serviço que os bispos prestam ao Povo de Deus.

O Hino ao Amor é escrito numa prosa ritmada com muitos verbos e figuras retóricas. É uma página toda especial da Primeira Carta aos Coríntios, depois das exortações e advertências sobre as assembléias (1Cor 11,2 ss), a “Ceia do Senhor” que exige uma convivência de amor (1Cor 11,17 ss) e ainda os dons do Espírito, a diversidade dos carismas na unidade do “Corpo de Cristo” (1Cor 12). De repente, Paulo muda de estilo e eleva seu ensinamento a um tom muito solene.

São três partes distintas: Não há carisma sem amor (13,1-3); o que é e o que não é o amor (13,4-7); o amor é eterno (13,8-13).

 

Não há carisma sem amor

Paulo é categórico. Sem o Amor nenhum carisma se legitima. Pelo contrário, deixa até de ser carisma. O que faz um carisma ter valor, para toda a comunidade, é que seja exercido com amor. Não adianta falar as línguas dos anjos, nenhuma profecia faz sentido, se não tiver Amor. Ajudar os pobres e dar de comer aos famintos não conta, nem sequer o próprio martírio, se não for fruto, conseqüência do Amor. O Amor aparece aqui quase que “personificado”. Paulo não conjuga o verbo “amar”, mas enuncia o substantivo e usa a expressão “ter Amor”. Esse Amor que inspira e acompanha todas as obras é reflexo de Deus! Amar é fazer Deus presente no mundo. “Amar o próximo” está intrinsecamente ligado ao “amar a Deus”. São João se expressará assim: “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós” (1Jo 4,12). Considera uma mentira existencial desligar o amor a Deus do amor ao irmão. “Quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). “O nosso Amor a Deus se mede pelo amor ao próximo” resume Edith Stein. Seria sacrilégio desvincular o amor ao próximo do Amor a Deus, louvar a Deus com “as línguas dos anjos”, mas deixar de “contemplar os rostos daqueles que sofrem”, para citar o Documento de Aparecida (DA 65): “Entre eles estão as comunidades indígenas e afro-americanas (...); muitas mulheres são excluídas em razão de gênero, raça ou situação sócio-econômica; jovens que recebem uma educação de baixa qualidade e não têm oportunidades de progredir (...); muitos pobres, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem terra (...); meninos e meninas submetidos à prostituição infantil (...); dependentes de drogas, pessoas com limitações físicas, portadores e vítimas de enfermidades graves (...) que sofrem a solidão (...). Não esquecemos também os seqüestrados e os que são vítimas da violência, do terrorismo (...). Também os anciãos (...) muitas vezes recusados por sua família como pessoas incômodas e inúteis. Sentimos as dores, enfim, da situação desumana em que vive a grande maioria dos presos (...). O que vale “ter conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência” sem ter a coragem de apontar para as enfermidades estruturais da sociedade e dar-se conta de que “uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo”, afirma o Documento de Aparecida: “a exclusão social. Com ela, a pertença à sociedade (...) fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia e sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente explorados , mas supérfluos e descartáveis ” (DA 65). Só o Amor consegue ver com os olhos de Deus os pobres e condenados à morte antes do tempo. Só o Amor consegue desvendar, a partir do coração de Deus, as causas dessa realidade iníqua que é fruto de estruturas injustas.

 

O que é e o que não é o amor

Paulo não fornece uma definição de “amor”. Nada de especulação teórica, de floreados românticos sobre o amor. Jesus também não respondeu com um conceito abstrato à pergunta do doutor da lei: “Quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Passou a contar a linda parábola do Bom Samaritano.

Em cinco versículos Paulo apresenta quinze características do Amor, quinze hábitos a serem cultivados. O que realmente importa são atitudes, comportamentos que o Amor suscita! O Amor tem que ser “concreto ” , “pé no chão ” !

Começa com dois atributos, duas qualidades que o Antigo Testamento reserva para Deus: paciência-longanimidade e a bondade-amabilidade. No Antigo Testamento a “paciência” e “longanimidade” de Deus está intimamente relacionada à sua misericórdia com os pecadores: “Deus misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel, que conserva a misericórdia por mil gerações e perdoa culpas, rebeldias e pecados” (Ex 34,6-7). A “bondade” também está ligada à misericórdia que revela a face “feminina” de Deus. A palavra equivalente na língua hebraica “ rahamim ”, já pela própria raiz, se refere ao amor da mãe ( rehem = seio materno) 3 . Da unidade que liga a mãe à criança aninhada debaixo de seu coração, brota o amor totalmente gratuito: a bondade, a ternura, a paciência, a compreensão. O Antigo Testamento atribui a Deus estas características: “Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio filho, eu jamais me esqueceria de ti” (Is 49,15). Este amor se manifesta de modo especial no perdão: “Eu os curarei das suas infidelidades, amá-los-ei de todo o coração” (Os 14,5).

Paulo coloca estes atributos “divinos”, a paciência-longanimidade e a bondade-misericórdia, como primeira característica do Amor. 4 Assim o Hino recomenda que vivamos a paciência-longanimidade e a bondade-misericórdia para com o próximo na mesma medida ou do mesmo jeito que Deus o manifesta para conosco.

Vêm, em seguida, oito enunciados negativos, esclarecendo o que o Amor não é, jamais pode ser, o que não faz e nunca permite que se faça:

· Não é invejoso. O Amor não conhece inveja, ciúme, ambições, carreirismo, rivalidades, paixões que tanto envenenam a convivência humana e tanto mal fazem à nossa Igreja.

· Não se ostenta, não é presunçoso, não é fanfarrão. O Amor não se preocupa com o que dá mais IBOPE! Não procura publicidade, fama, popularidade.

· Não é orgulhoso, não se incha de orgulho. O Amor exclui todo tipo de arrogância e ostentação, soberba e vanglória, tirania e prepotência.

· Nada faz de inconveniente, de vergonhoso. O Amor jamais atenta contra a moral e a honra, a dignidade de quem quer que seja. São invioláveis a intimidade, a vida privada e a honra das pessoas.

· Não procura o seu próprio interesse. O Amor não é egoísta, não calcula vantagens pessoais, não pergunta: “o que ganho com isso?”

· Não se irrita, não se encoleriza. O Amor é sereno, dialoga e procura entender, não perde o equilíbrio emocional a ponto de causar mágoas ao próximo.

· Não guarda rancor, não leva em conta o mal sofrido. O Amor cobre ofensas com o manto do perdão, jamais apela para a vingança, nunca parte para o revide.

· Não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade. O Amor sofre com a injustiça que é fruto do ódio, desrespeito e desprezo à dignidade da pessoa humana feita à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Mas se regozija com tudo que é verdadeiro, autêntico, inspira confiança, tudo que promove o relacionamento aberto, sincero, transparente entre as pessoas, aposta na fidelidade total, indestrutível e irrevogável. Para Paulo o antônimo de injustiça é a verdade que aqui significa a conduta correta, o reto proceder diante de Deus, o “andar com Deus”. 5

Os oito enunciados negativos que indicam o que o Amor não é, as dissonâncias e cacofonias causadoras de tanto mal-estar e ansiedade na comunidade, de repente, cedem lugar a um quarteto afirmativo. Dissolvem-se as nuvens cinzentas. Raia o sol anunciando, numa harmonia divina, tudo aquilo que o Amor encerra: Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

Mas estes quatro “tudo ” ainda não são o final da Sinfonia do Amor! São os primeiros acordes que introduzem o tema do último movimento que culminará com a retumbante apologia ao Amor: a maior delas é o Amor . O tema logo se apresenta incisivo: O Amor jamais passará. Creio que as palavras de Santa Teresa d'Avila dão a este versículo central do hino (13,8) a devida amplitude: Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa, só Deus não muda. A paciência tudo alcança. Quem tem a Deus, nada lhe falta. Só Deus basta.

Tudo passa: poderes e posses, glórias e grandezas, honras e títulos honoríficos, louvores e láureas, profecias e erudição, conhecimento e ciência! “ Ora, o mundo passa” escreve São João. (1Jo 2,17). “Nossos dias se dissipam (...), acabam nossos anos como um sopro (...) passam logo e nós voamos”, cantamos no Salmo 90. Mas o Amor jamais passará, porque “Deus é Amor: aquele que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16).

Só Deus basta , pois ele é Amor. Só ele é capaz de saciar nosso coração. Enquanto peregrinamos neste mundo permanecem fé, esperança e caridade . Pela fé, prova de realidades que não se vêem (Hbr 11,1) 6 almejamos um dia ver a Deus face a face, conhecê-lo como Ele é, amá-lo sem fim e limites, passar “ex umbris et imaginibus in veritatem” 7 . Na visão beatífica não há mais fé, pois experimentaremos finalmente na imorredoura felicidade “os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, tudo o que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9). A Esperança qual âncora da alma, segura e firme (Hb 6,19) dissipar-se-á no maravilhoso amanhecer da eternidade em que a montanha sagrada aparecerá luminosa e o Amor invadirá e encherá todo nosso ser sem jamais ter fim. A maior delas é o amor. Deus é Amor.

Mas ainda estamos a caminho e Santo Agostinho nos aconselha: “Amando o próximo e cuidando dele, vais percorrendo o teu caminho. E para onde caminhas senão para o Senhor Deus, para aquele que devemos amar de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, de toda a nossa mente? É certo que ainda não chegamos até junto do Senhor; mas já temos conosco o próximo. Ajuda, portanto, aquele que tens ao lado enquanto caminhas neste mundo, e chegarás até junto daquele com quem desejas permanecer para sempre” 8 . Amém.
 

* Artigo escrito por Penha Carpanedo

 

NOTAS EXPLICATIVAS:
 

1 No texto original grego: os caminhos.

2 No texto orginal grego: o verbo usado quer dizer: “por em movimento ” , “fazer andar ” , “mexer-se ” “sair da inércia ” , “estimular ” .

3 Cf. João Paulo II, Dives in misericordia , nota ao pé da página do n. 52.

4 São João insiste em seu Evangelho no mandato do amor como Jesus amou. Esse “como ” no grego é mais que uma simples comparação, significa “na mesma medida ” “do mesmo jeito ” . Depois do lava-pés Jesus explica o seu gesto: “Dei-vos o exemplo para que, como (= na mesma medida, do mesmo jeito) eu vos fiz, também vós o façais ” (Jo 13,15). “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros como (= na mesma medida, do mesmo jeito) eu vos amei ” (Jo 13,34; 15,12).

5 Da mesma maneira como o livro Gênesis fala de Henoc (Gn 5,22) e de Noé: “Noé era homem justo e íntegro (...) e andava com Deus ” (Gn 6,9).

6 O capítulo 11 da Carta aos Hebreus apresenta os exemplos de fé no Antigo Testamento como fonte da perseverança e força. Dezessete vezes inicia a frase em que apresenta os patriarcas com as palavras, Foi pela fé ....

7 Palavras que o cardeal John Henry Newman escolheu para o seu epitáfio.

8 S. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de São João, Tract. 17,9.