O Encontro da Aparecida na visão de Jon Sobrino

Em maio de 2007, realizou-se em Aparecida, a V Assembléia Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana. Na época, Jon Sobrino, jesuíta, teólogo salvadorenho, escreveu a seguinte carta, deixando claro quais eram suas esperanças em relação aos novos rumos da Igreja Católica no Continente. Trata-se de um leitura profética dos acontecimentos marcantes da Igreja e que se mantem atual, apesar de escrita no final de 2006.

Eis o teor da carta: 

"Querido Ellacuria. Logo se reunirão os bispos em Aparecida e Deus sabe o que irá ocorrer. O que é claro é que é preciso “reverter a história”, como disseste em teu último discurso em Barcelona, dez dias antes de tua morte. Certamente é preciso reverter a história do continente  e também, em boa medida, a história da Igreja.

Em Medellín esteve o dedo de Deus. Tu lhe agradeceste e o puseste a produzir entre nós, jesuítas e na espiritualidade de Santo Inácio, na UCA e no país. Logo se gerou uma reação, pois um Deus dos oprimidos molesta. Reagiu a Casa Branca com o informe Rockefeller e reagiram também alguns membros do CELAM. Tristemente, começou uma campanha de ataques a bispos, teólogos, religiosas e comunidades, e nem sempre com boas maneiras.

Neste contexto, Puebla devia pôr freio a Medellín, do que logo te deste conta. Analisaste em profundidade o documento preparatório e mostraste seus acertos e suas falhas. E, por certo, insististe em que a ambigüidade não se superaria “se não se transformasse radicalmente sua cristologia e eclesiologia”. Relembro-o agora, porque essa advertência continua sendo necessária. Tem-se, às vezes, a sensação que Jesus de Nazaré teria desaparecido da cristologia oficial. E da “Igreja dos pobres” – sem falar da “Igreja popular” – já não há menção. Porém, não só criticaste, mas também apresentaste um texto esplêndido: “O povo crucificado. Ensaio de soteriologia histórica” que junto com as homilias de Monsenhor(Oscar Romero), marcou época: os povos crucificados são a presença de Deus e de seu Cristo, e deles provém salvação. Tu te mantiveste firme na linha de Medellín e a enriqueceste. Hoje poucos falam assim.

Puebla não chegou a romper com Medellín, mas a deterioração eclesial se fez notar e em Santo Domingo já não podia ser ocultada, como agora se reconhece sem viseiras. Esteve organizado e controlado por Roma. Pelo que toca ao texto, inacreditavelmente não se deu importância aos mártires, nem se agradeceu pelo amor maior que eles esbanjaram, o qual é a pedra angular de toda Igreja cristã – e os pobres da cidade de Santo Domingo foram ocultados atrás de altos muros. Em meu ponto de vista pessoal, a Igreja me dava a sensação de deambular com medo de perder prestígio e com desejo de conseguir êxitos midiáticos e quantitativos. E no entanto hoje, apesar de numerosas celebrações, música e procissões, não deixo de perceber certa desorientação e, inclusive tristeza eclesial.

Dito em forma de tese, em Santo Domingo não se reconheceu Medellín como nossa “Assembléia de Jerusalém”. Em Medellín se decidiu, não já ir aos gentios, senão aos pobres, acompanhando-os e aprendendo deles. Em Santo Domingo houve déficit e descuido da causa dos pobres, embora não faltassem algumas palavras sobre inculturação, o que sinceramente agradeceram indígenas e afro-americanos, como somente o sabem fazer os pobres, inclusive, quando nos damos conta deles, precariamente e tarde. E, em minha opinião, o mais grave era a sensação de que a Igreja não tivesse nada importante de que alegrar-se. Longe ficava a exultação de Paulo em meio a perseguições como as nossas. E pouco havia da alegria de Jesus: “Graças, Pai, por haver revelado estas coisas aos pequenos”. Não se notava muito da alegria das comunidades, de suas romarias e aniversários de mártires, da solidariedade, da “ternura dos povos”... E sem gozo não pode prosperar uma Igreja baseada numa boa notícia.

A Igreja de Medellín se responsabilizou pela história e carregou a história. Agora, embora com algumas boas palavras em suas mensagens, em seu conjunto não dá a sensação de escutar o “surdo clamor que brota de milhões de homens” – oprimidos, mulheres, indígenas, afro-americanos, emigrantes, jovens que não sabem o que fazer nem aonde ir, - conhecidas palavras com as quais começava ‘A pobreza da Igreja’. Nem dá a sensação de que sua grande opção fundamental é “descer da cruz os crucificados”, como tu dizias, Eliacuría.

Pareceria, pois, que perdemos o rumo. E não lançamos mão de nossa tradição para retomá-lo: dom Helder Câmara, dom Leonidas Proaño, dom Sérgio Méndez Arceo, símbolos de uma Igreja comparável à de Las Casas e Valdivieso. E, por isso também não se ouve muito, certamente não como antes, o que segue na citação de Medellín: “pedindo aos pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte”. Pedem-nos hoje os pobres que os libertemos? Estamos carregando sua história?

Se dilapidamos a honradez e alegria que se originou com Medellín, a marcha-ré é inevitável e a cada dia que passa acumulamos atraso. A tarefa não é, pois, fácil, porém possível. Em Aparecida Deus pode voltar a irromper, como em Monsenhor Romero, ante o cadáver de Rutilio. (Rutilio Grande, padre jesuíta assassinado em El Salvador) E também em nós, embora não seja mais que por pudor. E vejo alguns sinais de esperança.

Há bispos que pensam que não podemos seguir com exagerado centralismo e sem tornar central a realidade de nossas comunidades, suas alegrias e tristezas. Não é evangélico, não é humano e não resolve os problemas. É preciso mudar e ver as comunidades.

Há gente que pensa e se aprofunda nas correntes subterrâneas que movem a história. Falam de Deus que se mostrou em Jesus e também, que se sente como em casa entre outros homens e mulheres que o adoraram e amaram desde antes do cristianismo. Falam do ser humano e do que humaniza: honradez com o real, compaixão sem compromissos, justiça contra a opressão, comunidade e colégio antes do que indivíduos isolados, o sentido comum da hierarquia de verdades...

Há grupos de leigos, sacerdotes e religiosas que seguem com esperança e em resistência permanente contra toda espécie de males. Não se deixaram vencer pelo desânimo e habita neles o que se costuma chamar de santidade primordial. Emociona vê-los reunidos para analisar o documento preparatório e fazer propostas. O mais importante é que se reúnem em comunidade e que, com ou sem o documento preparatório, olham e analisam a realidade do povo, de suas famílias, de suas paróquias e de si mesmos. Olham a Igreja para ver como está e como deveria estar. E no-lo dizem. Embora em pequena escala, cumprem teu grande desejo. Ellacuría, que recordamos nestes dias: “que o povo salvadorenho – e todos os pobres e oprimidos – façam ouvir sua voz” – também na Igreja.

Como será Aparecida? Só Deus sabe. Oxalá desencadeie, em pessoas, grupos e bispos, dinamismos criativos, porém agora só nos fixamos no texto que escreverão os bispos. O documento preparatório é decepcionante, mas é muito bom sinal que já se estejam fazendo propostas importantes para modificá-lo. As mais recentes são sobre Deus nas diversas religiões, a Igreja num mundo de grandes novidades, a mulher – de uma vez por todas – como pessoa, cristã, ministro e membro da Igreja, a nomeação de bispos... As mais fundantes (incrivelmente ausentes do documento preparatório) são sobre Jesus de Nazaré, sobre o Reino de Deus que anunciou e o anti-reino que combateu, a Palavra da Escritura... As mais urgentes são sobre a vida, a justiça e a verdade para as maiorias... E há também um esforço, grande e carinhoso, para apresentar Maria de Aparecida como símbolo, ao mesmo tempo, latino-americano e cristão: rosto dos pobres do continente e rosto de seu Deus.

O texto de Aparecida deverá ser analítico, bem analisado – e, oxalá se busque a presença de pessoas competentes em Bíblia, teologia, pastoral, saberes humanos que ajudem os bispos. Assim procediam há muitos anos muitas conferências e bispos entre nós – e recordamos bem como insistias na importância de boas análises e conceitos. Porém o texto necessitará, além disso, de espírito, que é outro de teus legados. “Pobres com espírito”, escreveste, para fazer convergir as bem-aventuranças de Lucas, “materialidade”  e as de Mateus, “espírito”. E, em outro contexto, embora não te atraísse a idéia de uma UCA doutrinalmente confessional, sim, insistias em que fosse uma UCA “com espírito”. Por isso a definiste como uma universidade, “razão” de inspiração cristã, “espírito”.

Isso é o que esperamos de Aparecida: “textos com espírito”. Alguns perguntarão o que é isso e só posso responder com dois exemplos. Na homilia de 10 de junho de 1977, Monsenhor Romero disse lapidarmente: “Jamais nossa Igreja deixará só o nosso povo que sofre”. O povo captou o conceito e o espírito que o imbuía. E, por ambas as razões, aplaudiu. E outro texto teu: “O que as agências de turismo fazem para que o mundo se divirta deveria fazer a Igreja em direção contrária, para que o mundo se converta”. Com isso ficava claro o conceito que já havias desenvolvido sobre o que é preciso fazer com o “povo crucificado”. E ficava clara a exigência de um fazer decidido e dialético. O texto tinha espírito. Era evocador e provocativo. Em Aparecida são necessários esses tipos de textos, que possuem lucidez e espírito com ânimo. E para isso talvez possam ajudar as seguintes reflexões:

1. Liberdade contra o medo. Dito com simplicidade: há medo na Igreja, Ellacu. Não é o medo de teu tempo aos que podiam matar o corpo, senão aos que podem prejudicar nossa comodidade, a que sejamos reconhecidos ou censurados. Medo de perder privilégios, status, poder social. A impressão que damos, muitos hierarcas e sacerdotes, é que muitas vezes estamos como que paralisados. É importante recuperar a liberdade, o que, ademais, é central na fé: somos filhos, não servos. E em nossos mãos temos uma palavra que, por ser de Deus, não está acorrentada.

2. Humildade, exame consciência. No texto citado de Medellín prosseguiam os bispos: “Chegam também até nós as queixas de que a Hierarquia, o clero, os religiosos, são ricos e aliados dos ricos”. Matizaram as queixas, às vezes baseadas em aparências, e insistiram na pobreza de paróquias e dioceses, porém concluíram com uma grande verdade: “No contexto de pobreza e também de miséria em que vive a grande maioria do povo latino-americano, os bispos, sacerdotes e religiosos temos o necessário para a vida e uma certa segurança, enquanto os pobres carecem do indispensável e se debatem entre a angústia e a incerteza”. Exemplo de honradez e de humildade e até mesmo uma forma de pedir perdão.

3. Palavra contra o silêncio. Não podemos equivocar-nos, porém não podemos calar ante o que afeta gravemente o mundo de hoje, o de 2 bilhões que têm que viver com dois dólares por dia. Falamos sobre problemas graves da família, e com razão, porém não contra a guerra preventiva – seu conceito e sua realidade – do presidente Bush, que produz milhares de mortos. Denunciamos alguns pecados dos outros, porém calamos demasiadamente os próprios – alguns deles aberrantes, - a não ser quando já são inocultáveis. A Igreja menciona e condena ideologias até o dia de hoje, como o nazismo e o comunismo. Porém a ideologia do capitalismo em si – não só a do selvagem - não é denunciada com vigor. E tampouco se recorda a ideologia da doutrina da segurança nacional, causadora entre nós de dezenas de milhares de mortos, em mãos, muitas vezes, de batizados.

4. Arrojo contra a pusilanimidade. O entusiasmo abunda e, em excesso, em muitos movimentos. Porém nos mantemos deficitários no anúncio, não de qualquer Deus, senão do Deus de pobres e vítimas. Proclamar a realidade desse Deus não é coisa de mera doutrina, senão de convicção e ousadia. E tampouco o é proclamar Jesus, o de Nazaré, o que passou fazendo o bem e morreu crucificado e assim se nos manifestou como o Filho de Deus. Faz falta audácia para propor esse Jesus como o irmão maior, e não abrandá-lo de mil formas, infantis ou solenes.

5. Respeito ao específico, contra a imposição universal. Que existam tensões numa macrocomunidade como a Igreja é compreensível, porém, atualmente o problema não reside tanto em algum turvo desejo de se independizarem as igrejas locais do terceiro mundo, as de pobres, indígenas e afro-americanos, que configuram “a grande Igreja dos pobres”. Costumam provir antes do centro: suspeitas, advertências e condenações, e pouco agradecimento. O espírito de inculturação não abunda. E, mesmo quando fazemos a opção por eles, no centro da Igreja no estão os pobres – nem tampouco o estão nas democracias -, senão algo que mais se parece com riqueza e poder.

6. Seriedade contra a facilitação. Depende de lugares, porém da pena ver em muitas comunidades que, quanto mais light são as coisas, mais religiosas parecem. Recordam a advertência de Péguy: “porque não são deste mundo, crêem que são do céu”. Que isto suceda entre os simples é até certo ponto compreensível, porém é irresponsável apoiar religiosidades do mágico e melífluo, que não humanizam. Jesus disse: “tornem-se como crianças”, porém não disse: “tornem-se infantis, não discorram, não perguntem, não protestem”. Certo é que a Deus não se vai pelo caminho do racionalismo, mas é triste que se tolerem e até se fomentem alguns tipos de religiosidade, como se os simples não tivessem capacidade de raciocinar. E, pior ainda, se isso se tolera ou fomenta porque assim ao menos manterão a fé. Em teu tempo dizias, Eliacu, que a conscientização é mais urgente que a alfabetização. Na atual conjuntura da Igreja diríamos que o amadurecimento no fato da fé é mais urgente do que expressá-la religiosamente, coisa muitas vezes pitoresca.

7. Mistagogia e credibilidade contra a mera doutrina. E também é preciso insistir na outra direção. Muitos vão despertando para a razão, pois a credulidade não dura para sempre. Então é preciso oferecer verdade, porém não impor uma mera doutrina. Por isso, cada vez é mais necessária a mistagogia que conduz ao mistério de Deus. Significa introduzir-nos num mistério que é maior, mas que não empequenece, que é luz, mas que não cega, que é acolhida, mas que não impõe. E isso, em definitivo, só é possível comunicá-lo se tivermos credibilidade. Sem ela, escutaremos as palavras da Escritura: “por causa de vocês se blasfema o nome de Deus entre as nações”. Com ela, “o povo louvará Deus”.

8. A Igreja dos pobres contra uma Igreja vazia universalmente. O sonho de João XXIII, o do cardeal Lercaro, de dom Helder Câmara e de Monsenhor Romero, continua sendo a “Igreja dos pobres”. De quem, se não dela? Isto significa que os pobres são o princípio inspirador da Igreja, não apenas os beneficiários de sua opção. Não negam nada nem excluem ninguém, porém, são indispensáveis para configurar cristãmente todo o cristão; o que podemos saber, o que nos é permitido esperar, o que temos que fazer e o que nos foi dado celebrar. E todos somos chamados a participar, embora de forma diversa, analogamente, se dizia antes, na “pobreza real” dos pobres e no espírito dos “pobres com espírito”.

Ellacuría. Termino recordando teu último discurso: “Somente com todos os pobres e oprimidos do mundo podemos crer e ter ânimo para tentar reverter a história”. Tu nos dizes, pois, que os pobres são fonte de uma fé e de um ânimo que não nos vem de nenhuma outra parte. Como te escrevi no ano passado, “fora dos pobres não há salvação”. Esperamos que Aparecida o proclame.

E, junto a eles, o melhor que produziu nossa Igreja e nosso povo; os mártires. Não vejo como é possível reunir-nos sem recordar e agradecer aos milhares de mártires – assim chamamos aos que entregaram sua vida por amor. E já que é uma conferência de bispos, não vejo possibilidade de não recordar e agradecer, com orgulho, a seus irmãos Enrique Angelelli (bispo argentino assassinado pela ditadura militar)  Oscar Romero, Joaquín Ramos, Juan Gerardi (bispo guatemalteco assassinado por defender os direitos humanos).

Já sei que, antes estas coisas, o Vaticano impõe paciência, prudência, silêncio. Mas tu não atuaste assim. Três dias depois de seu assassinato disseste: “com Monsenhor Romero Deus passou por El Salvador”. E dom Pedro Casaldaliga escreveu: o “São Romero da América”. O mesmo disse o cardeal Carlo Maria Martini, aos 15 de outubro de 2005, lá de Jerusalém.

“Parece-me, pois, que sua morte é a de um mártir da Justiça, da verdade e da caridade. E, embora eu seja de parecer que não necessitamos multiplicar demasiado os santos canonizados, veria com agrado que seu heroísmo e exemplaridade, sobretudo para os bispos, seja reconhecida oficialmente pela Igreja”.

Ellacuría, oxalá em Aparecida retomemos o vôo, sem repreensões e com magnanimidade, sem rancores e com esperança. Mas, é importante retomar o rumo e encaminhar-nos para um “novo Medellín”. Em Aparecida deverá haver muito de “novo”, mas também muito de “Medellín”. E isso é o que, em meio das falhas e limitações que mencionamos, continua presente na América Latina: religiosas que defendem indígenas oprimidos, leigos e leigas que trabalham pelos direitos humanos dos pobres, e com enfermos de Sida; camponeses que estudam a Bíblia e se adentram na teologia; grupos de solidariedade com os emigrantes; romarias populares e aniversários de mártires; inumeráveis vidas admiráveis escondidas; bispos dedicados a seu povo e que se mantêm “em rebelde fidelidade”... E uma longa ladainha de coisas boas que fazem os pobres e os que com eles se solidarizam.

E há fé. Continuam crendo num Deus que é Pai-Mãe. Num Filho que é Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado. Num Espírito que é senhor e dá vida e fala pelos profetas. E ocorre que o Evangelho é como uma pequena planta que cresce enquanto dela cuidamos um pouco. Cuidá-la com esmero é a herança de Medellín. Por isso temos esperança. E, por isso, ano após ano, recordamos vocês, recordamos todos os mártires. Vocês são os cuidadores, os guardiães do Evangelho".

* Disponível em http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=1553