Um olhar sobre a cidade: A carta de D. Helder e as violações aos Direitos Humanos hoje

A Carta-diário de Dom Helder Camara, recentemente divulgada, sobre o desaparecimento e assassinato de Pe. Henrique durante o período militar traz em si a reflexão das conquistas dos Direitos Humanos na sociedade brasileira nos últimos anos.

Suas palavras refletem mais do que alguns páginas escritas em folhas já amareladas, mas um sentimento humano, aliado a uma contínua esperança e a necessidade instintiva de construir a Paz.

A mensagem íntima do Dom, retrata os momentos do reconhecimento do corpo, o velório e o funeral do Pe. Henrique. Permeada de simbolismo e poesia, apesar da alta carga de sofrimento, explicita três realidades bastante atuais: os crimes praticados pelo Estado; o abandono da juventude e a luta pela justiça.

A forma brutal como D. Helder descreve os sinais de sevícias encontrados no corpo de Pe. Henrique podem ainda hoje, serem reconhecidos nas esquinas das periferias, onde dezenas de jovens, apenas no Recife, são mortos todas as semanas.

O Estado, como naquele ano de 1969, ainda é o acusado pelas mortes e atos degradantes, cometidos, por vezes, pelos seus agentes institucionais. Comprovação disso é o fator de responsabilização internacional do Governo brasileiro, por parte das Cortes Internacionais de proteção aos Direitos Humanos, quando da violação cometida por seus representantes públicos, nas mais diversas esferas.

A mídia escrita e falada, atualmente, não é mais censurada, como nos anos de chumbo. Entretanto, a enxurrada a todo o momento de notícias brutais, sem ao menos trazer um caráter crítico das reais causas da problemática, mas apenas aproveitando-se da situação, para construir uma cultura da violência banal, desloca o foco de uma análise qualificada das questões que permeiam a segurança pública, para reisificação das vítimas, transformando-as em uma série de números imprecisos e atores de comentários vulgares do cotidiano.

Assim, as violações aos direitos humanos ainda fazem parte da realidade social do país. Onde nesses casos as organizações não-governamentais permanecem em seu bom combate contra o Estado violador, que não apenas descumpre seus deveres contidos nas normativas internacionais de proteção aos direitos humanos, como também da própria legislação interna onde os direitos fundamentais são plenamente garantidos.

Deve-se, também, reconhecer que muito se tem avançado desde a morte de Pe. Henrique até o momento, em matéria de Direitos Humanos, já que é bem verdade que hoje podem ser registradas diferenças significativas em relação ao antigo regime ditatorial. Contudo, ainda hoje vivemos na busca da efetiva consolidação do Estado democrático de Direito, enfrentando os interesses e influxos prevalecentes na sociedade. Fatores estes que reforçam o contínuo ciclo de violações a que a grande massa populacional se confronta todos os dias nas ruas da cidade e do País como um todo. 

Este contexto histórico reflete-se expressivamente nas discussões sobre as reais garantias dos direitos humanos hoje, onde avanços pontualmente percebidos entram em contradição com o abrangente universo de violações perpetradas. Fator paradoxal este que desde a luta do Dom, o "Bispo Vermelho", é levado à esfera internacional, onde o Brasil é elogiado pelo favorecimento aos direitos humanos e, ao mesmo tempo é associado ao inesquecível desabafo e denúncia da prática de torturas contra presos, feito pelo Arcebispo, durante uma Conferência em Paris, em 1970, e que é até hoje reiterado, por ocasião da recorrência de casos, por organizações não-governamentais nacionais e internacionais.

Desta forma o contraste é sempre visível. O mesmo Dom, em sua obra "O Deserto é fértil", nos diz que, "poder-se-ia pensar que, nos países subdesenvolvidos, todos se nivelassem na pobreza ou até na miséria e nas condições subumanas de vida. Não é o que acontece: O que geralmente se dá é o colonialismo interno: pequenos grupos de ricos do país, cuja riqueza é mantida à custa da miséria de milhões de concidadãos". Eis uma das realidades mais cruéis e veladas da sociedade.

O Dom, ainda expressa a sua dor, na Carta-diário, pela perda de um amigo e irmão de fé, não por meio de uma desolação pueril, mas exortando a todos, palavras de perseverança. Palavras essas que, encaixam-se perfeitamente, se aplicadas à realidade dos que sofrem pela dor dos jovens, que marginalizados se sentem como "à beira de uma estrada, com urgência de seguir e vendo passar carros, em grande velocidade, sem parar".

Trazendo à realidade atual os apelos de Dom Helder, o mesmo continua a nos dizer que: Aos "velhos Pais, esmagados de dor" a fortaleza na fé; "aos jovens" abandonados a própria sorte, força e esperança sempre, e "aos fiéis", os que crêem na possibilidade de melhora, que possam ajudar a propagar a idéia de que sem a busca da concretização dos direitos humanos, os mesmos não serão, infelizmente, efetivados pela mera boa vontade do Estado.

"Para o acionamento pleno da justiça sem descarga de ódio, a criatura média - se não for esquecida, se for posta a par do que se planeja, se for ouvida, se for despertada para a violência dos pacíficos - desempenhará papel de enorme alcance".

Papel este que o Dom e o próprio Pe. Henrique, por ser "da linha do Arcebispo", desempenharam como ninguém, levando a cruz nas costas e acreditando que o julgo era leve.

A busca pela conquista da Paz, passa pela dor do sentimento de impotência, contudo importante é seguir, tendo como lema as palavras do Dom, tão contemporâneas, quando o mesmo alega: "Querem que eu me proteja; que não ande só, à noite; que não durma só. Quem disse que eu ando só? (...) nada acontece ou acontecerá por acaso. É graça, é privilégio viver a 8ª bem-aventurança".


* Artigo escrito por Por Rodrigo Deodato, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares - GAJOP. Disponível em <http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=35806>