Querido Ellacu:
Várias vezes me pergunto que Igreja vocês nos deixaram e como andamos hoje. Possivelmente, o carinho me cegue; porém, creio que aquela Igreja, a de Monsenhor Romero, era uma Igreja salvadorenha, popular, de pobres e mártires. E era uma Igreja cristã, povo de Deus, recordação viva de Jesus e portadora de seu Espírito. História e transcendência caminhavam de mãos dadas.
Rahner havia falado de "inverno eclesial"; porém, com limitações e falhas, certamente, entre nós florescia uma Igreja pujante. "Vocês, uma Igreja tão viva!", dizia Mons. Romero. Recordo-a com agradecimento e com a convicção de que pode nos continuar ajudando.
Sobre isso, quero falar-te, Ellacu. E também comentarei três princípios teológicos sobre os quais costumávamos conversar. Hoje, todavia, me parecem importantes.
Os avatares de nossa Igreja hoje
Nossa Igreja é complexa, Ellacu, e há opiniões distintas sobre o que vai bem e o que vai mal. Dizem que é um tema "delicado"; porém, me parece importante abordá-lo. Com boa vontade, claro, e também com lucidez. Em todo caso, se cometemos erros, outros poderão corrigi-los.
Em primeiro lugar, o positivo. As raízes da Igreja que vocês nos deixaram não secaram e continuam produzindo frutos, não escassos e muito meritórios, muitas vezes, admiráveis. Há comunidades comprometidas e entregadas, verdadeiramente cristãs. Defendem os pobres, trabalham com gangues e enfermos de Aids, apóiam os imigrantes e vítimas da opressão, lutam para que o meio ambiente seja humano, denunciam a mineração exploradora, e, cada vez mais, trabalham seriamente pela juventude. Celebram liturgias com criatividade salvadorenha, não importada, e praticam devoções populares romerizadas: continuam cantando: "los manteles largos y el conqué", de Rutilio. Estudam teologia, também a da libertação, e se familiarizam com a Bíblia. E para compreender as coisas de Deus, também usam a cabeça, o que é muito importante em uma cultura midiática e manipuladora, que não convida a pensar. E assim ficam mais protegidos contra a avalanche de fundamentalismos que abundam. Creio, Ellacu, que vivem na Igreja com maturidade.
Nas comunidades ainda existem acompanhantes, muitas vezes de grande qualidade. Há religiosas, mulheres que entendem bem sobre o cuidado do humano. Não são movidas pela busca do poder, mas pelo serviço. Entregam-se sem nada pedir para si. Sem elas, a Igreja desmoronaria. Em circunstâncias muito distintas as de vocês, certamente, há pastores ciumentos. Recordam a entrega do Padre Rafael Palacios e a bondade e a simplicidade de Frei Cosme Spezotto. Nesses dias, apareceu na TV o Padre Rogelio Ponceele, a quem conheceste e apreciaste. Acompanhou os camponeses em Morazán durante a guerra, e, vinte anos depois, todavia, continua com eles. O faz como sacerdote, e insiste nisso; não para defender-se de inquisidores, mas porque pensa que o melhor que pode fazer pela gente é mantê-los na fé. E repete com frequência: "A fé em Deus dá felicidade a esta gente. Eu também a experimentei. Com Deus sou mais plenamente humano". Tu também falaste dessas mesmas coisas no prólogo à edição italiana do livro sobre ‘Rogelio Ponceele Vida y muerte en Morazán’. Com pouco vento a favor, porém com tenacidade salvadorenha, recordam, resistem e caminham.
Existe fé nas comunidades escondidas de gente pobre, distantes de todo tipo de poder, civil ou eclesiástico. Há pouco, um amigo me dizia com a solenidade própria do carinho: o que salva a nossa Igreja é a fé dos pobres. Assim é, Ellacu. Misteriosamente, nos levam em sua fé. E para evitar maus entendidos, mesmo que em poucas palavras, quero insistir em que esses pobres e essa Igreja de pobres rezam. Esperam e crêem em Deus.
Porém, nem tudo é dessa forma. O cansaço, produzido por um passado muito difícil e o "inverno eclesial", que também chegou até nós, faz com que outros se encaminhem por destinos complicados. Aparecida nos avisa desse perigo, e com palavras bem fortes, certamente. "Nossa maior ameaça ‘é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas, na verdade, a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez’" (n. 12). É importante analisar esse desgaste. E se é feita com objetividade, somente bem produzirá. A realidade eclesial é distinta segundo os lugares e as dioceses; e não podemos analisá-la detalhadamente. Nos fixaremos nas novidades consideradas em seu conjunto.
Nesses anos, muita gente se viu empurrada a uma religiosidade mais de devoções do que de compromisso. Nela, têm buscado alívio para a dura carga que é a vida; muitos buscam escapar ao norte -e somente com grande respeito podemos questionar essas coisas, nós que temos a vida assegurada. Aparecem novos grupos e movimentos, evangélicos e pentecostais. Entre eles surgem dirigentes de todo tipo, predicadores, pastores, cantores, curadores; porém, dito com respeito, muitas vezes, dão a sensação de caminhar como ovelhas sem pastor. Faltam Romeros, Proaños, Gerardis. Há outros, gente mais sofisticada, que entendem bem o que se pretende com essas novidades: que não volte a prosperar Medellín, nem a Igreja de Monsenhor Romero. E não podem dissimular sua satisfação: "agora vamos bem". Em uma reunião paroquial, uma senhora começou a falar sobre Monsenhor; porém, um clérigo de certo status a impediu de continuar: "viemos para celebrar a liturgia, não para falar sobre Mons. Romero". Às vezes, porém, têm que se calar, por exemplo, quando o papa Bento XVI disse em uma de suas viagens que "não há problemas para canonizar a Monsenhor Romero".
O impacto da Igreja para gerar consciência coletiva no país mudou muito. Não ressoam com clareza palavras como as do profeta de Israel, a de Jesus contra os escribas, fariseus e sumos sacerdotes e as denúncias de poderosos sem consciência -como nas homilias de Monsenhor. Tampouco são publicadas mensagens, cartas sobre temas candentes, preparados em equipe, com consultas prévias às comunidades, tudo o que costumava gerar um sentido de "corpo". Não é que nada se fale; porém, dada a magnitude dos problemas, poderíamos fazer mais.
A religiosidade não desapareceu; pelo contrário: explode em diversas direções. Em conjunto, predomina uma religiosidade que podemos chamar de "o que faz feliz": curas em proveito próprio, desejo compreensível, porém perigoso, que leva a ignorar a exigência do seguimento; inúmeros louvores, às vezes bem organizados, outros em uma linha mais intimista; peregrinações, às vezes a lugares distantes, mistura de devoção e turismo.
Não quero exagerar, Ellacu, porém, sinto que a religiosidade popular de antes era mais vigorosa. E, certamente, para ser Igreja de Jesus havia que pagar um alto preço: tensões e discussões internas, sempre dolorosas; conflitos externos com poderosos e opressores; insultos e perseguições. Agora não. E alguns não dissimulam o alívio: "já passou o vendaval".
Novidade importante é o uso dos meios de comunicação. É evidente que podem ser úteis para a evangelização; porém, tal como funcionam, dá o que pensar. Pode-se cair em uma espécie de ex opere operato mal entendido: "quanto mais meios, melhor", "quanto mais horas de programação, melhor", sem preocupar-se muito com o conteúdo e a qualidade da mensagem, nem da organização e coordenação das milhares de horas de programação do total de emissoras da Igreja. Retransmitem coisas boas em si mesmas e às vezes bem feitas: eucaristias, algumas homilias e palestras sobre teologia; porém, se centram excessivamente em devoções, milagres, aparições, lendas esotéricas. E aparece pouco a realidade, noticias e comentários sobre o que acontece nessa parte da criação de Deus que é nosso país, e que justiça temos que praticar para curá-la. Segundo a Evangelii Nuntiandi, o que dá eficácia à evangelização é o "testemunho". E isso, perdoem-me a obviedade, não o supre nenhum êxito midiático -nem acadêmico, para que sejamos bem entendidos.
Ellacu, não quero ser injusto em coisas tão delicadas; porém, não creio que seja bom silenciar sobre elas. O problema de fundo parece ser o querer substituir uma Igreja "difícil", a do seguimento, a que trabalhava por unificar a luta pela fé e pela justiça, por uma Igreja "fácil", de liturgias e devoções, com obras de misericórdia; porém, sem maiores problemas para promover a justiça. E, assim, crescer em número.
Tampouco nessa Igreja ser cristão é tarefa fácil, evidentemente. Cumprir os mandamentos sempre é tarefa árdua. Não quero, pois, ser simplista. Porém, também é verdade que hoje a Igreja não nos confronta com as loucuras, para expressá-lo de alguma maneira, de Mons. Romero. Mencionemos somente uma, que tu também costumavas recordar em momentos solenes, e perdoem-nos se, ao recordá-la, parece que perdemos o juízo: "Seria triste que em uma pátria onde se está assassinando tão horrorosamente não contássemos entre as vítimas também os sacerdotes. Eles são o testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas do povo". Não é verossímil que essas coisas aconteçam agora, porém, é importante recordar essas palavras de Monsenhor porque ilustram aquelas outras de Jesus, que, essas, sim, não podem ser ignoradas: "Quem quiser ganhar sua vida, a perderá. Porém, aquele que a perda pelo evangelho, a ganhará".
Depois do dito, é compreensível que alguns se alegrem de que já passou aquela Igreja. Outros agregam também -a pesar de não dizê-lo de maneira tão seca- o que o grande inquisidor disse a Cristo: "Vai, Senhor, não voltes". Outros, com certa lógica, porém interessadamente, sentenciam: "as coisas mudaram", apesar de estar de acordo com essa lógica, o mesmo deveriam dizer do evangelho de Marcos -e de Jesus de Nazaré.
Sim, têm razão os que nos chamam a atenção sobre as novidades que devemos considerar. Entre outras, a evangelização e a missão, tal como nos pede Aparecida; levar a sério a mulher na Igreja; repensar as relações com outras igrejas e religiões, com evangélicos e pentecostais; a ecologia; cada vez mais, a juventude... Porém, tampouco essas novidades fazem com que a Igreja de Monsenhor seja supérflua. O que temos que fazer, com o tu dizias, é "atualizar suas virtualidades", produzir a "virtude" -força, energia- daquela Igreja para afrontar o novo e atualizar o perene: orar, celebrar a eucaristia, viver com fé, esperança e caridade. Creio que entre nós, todavia, não apareceu nada melhor do que aquela Igreja de Monsenhor, para ser o princípio e fundamento sobre os quais construir a Igreja de hoje.
Assim, vejo os avatares em que estamos, Ellacu. O que eu disse, o mais positivo e o mais negativo não tem porque acontecer sempre em estado quimicamente puro. Às vezes, se misturam. Porém, o importante é "caminhar" como Deus manda. E, para isso, quero recordar alguns "princípios" sobre os quais podíamos conversar. Naquele tempo nos pareceram fundamentais para elaborar uma teologia da Igreja, e penso que, todavia, o são. Vou concentrar-me em três.
1. A centralidade do reino de Deus
É a mudança copernicana que nos tocou viver. No centro está o reino de Deus. Eu havia escrito que "Jesus não predicou sobre si mesmo, nem sequer somente sobre Deus, mas, sim, sobre o reino de Deus". Tu trabalhaste a idéia e em um congresso sobre as três religiões abrahâmicas proferiste uma formulação completa: "O mesmo que Jesus veio anunciar e realizar, isto é, o reino de Deus, é o que deve se constituir em objeto unificador de toda a teologia cristã... A maior realização possível do reino de Deus na história é o que deve ser continuado pelos verdadeiros seguidores de Jesus". Para Jesus, esse reinado de Deus é "um mundo no qual reine a paz com justiça e a solidariedade universal", como repete nosso amigo Xavier Alegre. Vejamos algumas implicações dessa mudança fundamental para o ser e o fazer da Igreja.
Desde o reino, a Igreja sabe o que é o último. Isto é, "Deus" e "os pobres". "O reino pertence unicamente aos pobres", escrevia J. Jeremias. E, em uma linguagem equivalente, "a glória de Deus é que o pobre viva", dizia Mons. Romero. Casaldáliga o formulou com absoluta clareza: "tudo é relativo, menos Deus e a fome". A consequência é que a Igreja deve estar a serviço do reino de Deus e do Deus do reino, superando a recorrente tentação de colocar-se a si mesma no centro.
Deve sintonizar com o Deus do reino, com sua misericórdia: "façamos redenção", em palavras de Santo Inácio na meditação da encarnação e com sua indignação: "ai dos que vendem o pobre por um par de sandálias!" Deve enfrentar e denunciar a idolatria; porém, não como tautologia estéril: não temos que absolutizar nada criado, cuja denúncia não incomoda a ninguém, mas como o que é: dar culto a ídolos, realidades históricas existentes, que dão morte e, por necessidade, exigem vítimas para subsistir. Bem disse Monsenhor, com tua ajuda, na quarta carta pastoral.
Ellacu, em assunto tão grave, como é combater a idolatria, além de proclamações éticas, há déficit. E a razão é que enfrentar os ídolos leva ao conflito, o que se busca evitar, compreensivelmente. E para fazê-lo com boa consciência se ideologiza uma falsa paz, estar bem com todos, inclusive, às vezes, com quem promove o anti-reino.
O reino impulsiona a Igreja à história. Nela deve encarnar-se para propiciar graça: verdade, compaixão, firmeza, libertação e para erradicar pecado: mentira, injustiça, opressão, superando a tentação de espiritualismos e de abandono do histórico. Deve fazê-lo com solidariedade, tornando seus os gozos e esperanças, tristezas e angústias de todos, sobretudo dos pobres e de quantos sofrem. E deve fazê-lo com seriedade. Sem levar a sério o reino de Deus, o pecado se torna trivial e a salvação se torna etérea.
E algo verdadeiramente central é que, com o reino de Deus, se recupera a Jesus de Nazaré, tarefa sempre necessária, pois não temos que dar por certo que sempre o recordamos na Igreja. Quando se esquece o reino, produz-se o esquecimento de Jesus. Com o cuidado e o respeito que devemos ter ao falar dessas coisas, então, parece que vivemos em uma voragem de "cristos", "crianças deus", "divina misericórdia"; de um Cristo, Kyrios onipotente, pantocrator; ou de uma abstração conceitual: "uma pessoa divina que subsiste em duas naturezas". Para isso pode haver legítimo lugar na teologia e na piedade. Porém, na vida real, por trás de tudo isso pode e costuma desaparecer Jesus de Nazaré. É tarefa de sempre trabalhar para que reapareça aquele "Jesus histórico" que ensinamos, Ellacu, e que hoje o torna a oferecer, como precioso presente, o livro de Pagola.
Em segundo lugar, em relação ao serviço do reino, se entende melhor quem é Jesus de Nazaré e o que a Igreja deve fazer em seu seguimento: passar fazendo o bem, anunciar boas notícias aos pobres e devolver a dignidade aos desprezados; confortar os débeis e curar os enfermos; dizer sempre a verdade, a que vem de Deus, para consolar a oprimidos e apontar a opressores; falar com autoridade sem dogmatismo, ensinar com clareza sem doutrinação, exigir com radicalidade sem submissão; resistir até o final, com altos e baixos de medo e esperança. E de Jesus de Nazaré cada vez me impacta como respeitava e valorizava a liberdade e a razão dos seres humanos.
Por último, com Jesus, a Igreja pode entender melhor a realidade e o destino dos povos crucificados. Preso à noite e à traição, acusado falsamente, insultado, torturado e abandonado, morreu em uma cruz não por erro e nem por acaso -e não temos que esquecer a imensa delicadeza que teve ao despedir-se de seus amigos com uma ceia. Tudo isso para introduzir-se, livremente, no conflito fundamental da história: a favor dos oprimidos e contra os opressores.
Ellacu, hoje não se fala muito desse Jesus na cruz, nem dos conflitos históricos que continuam levando à cruz inúmeros seres humanos. Nem sequer Aparecida, com tantas coisas bem ditas -a necessidade de "recomeçar desde Cristo" para que a Igreja siga o proceder de Jesus, diz belamente no N. 41- e com sinceros impulsos para atuar como Jesus, se pergunta por que o mataram. Tu, sim, o fizeste em um escrito fundamental: "Por que morre Jesus e por que o matam". Perguntaste por dois motivos. O primeiro, por fidelidade ao mistério de Deus, presente, silente e acolhedor na cruz. E o segundo, para não ser cegos diante da crueldade deste mundo. Ninguém na Igreja deveria esquecê-lo e nem fugir do conflito.
1. Igreja "maternal" antes que "magisterial"
Ouvi quando comentavas a Mater et Magistra, de João XXIII. Naquele tempo, era uma maneira de defender a ortopráxis diante de ortodoxias imperantes, inclusive de dar-lhe prioridade. Porém, tua reflexão ia além. Referia-se ao que a Igreja é em essência. É antes de tudo, mãe, parteira de vida. Sua essência é gerar, de forma visível e palpável, bondade, amor, misericórdia, fraternidade, justiça, reconciliação, solidariedade. É propiciar estruturas que, por sua natureza, dêem vida às maiorias, e enfrentar-se com as que a impedem ou a anulam. Hoje, insistimos no "cuidado" -coisa tão maternal- também da natureza. E na ternura.
Atualmente, temos que fazer uma advertência: que, por ser mãe, a Igreja não infantilize seus filhos, não pense por eles, não os superproteja e decida por eles, de modo que nunca cheguem a ser adultos na Igreja. Ambos perigos são claros em muitas pastorais e liturgias, porém são tolerados, pois qualquer coisa parece ser boa, desde que não convirja para comunidades de base e teologias de libertação.
E temos que fazer também uma petição, com delicadeza. É bom, como fez o Concílio, colocar a Igreja em relação a Maria de Nazaré, a mãe de Jesus. Porém, com cuidado. É bom apresentar a Maria com os apóstolos no cenáculo depois da ressurreição; porém, temos que começar desde o princípio e voltar ao reino de Deus. A sua disponibilidade diante de Deus na anunciação vem unida a uma esperança: que Deus ponha nosso mundo de cabeça para baixo, eleve os humildes e derrube os poderosos -que os multimilionários passem fome alguma vez, para ver se isso os comove e os converte. Esse é o reino de Deus que, como Maria, a Igreja deve buscar e construir. E também deve manter centralmente a fidelidade de Maria até o final: a mãe ao pé da cruz. É a imagem de onde a Igreja atualmente deve estar e que o deve fazer diante de um povo crucificado. "Were you there when they crucified my Lord?", cantavam os negros escravos do norte.
Historicizar assim a Maria de Nazaré é o melhor antídoto contra o perigo recorrente de desencarná-la com um excesso de aparições e devoções, às vezes, além de toda razão. Então, já não é a mulher e mãe Maria, a de Nazaré e a do Gólgota, lugar da caveira, a poucas léguas de Jerusalém. Dessa forma, Maria de Nazaré, tal como seu filho Jesus, desaparece.
A Igreja também é mestra. Como tu não irias valorizar isso, Ellacu, convencido da importância do saber e de comunicar saber? Porém, de novo, uma advertência: que a Igreja não faça da ortodoxia o central nem a use como forma de doutrinar. E o que é mais perigoso: que não se considere dona da verdade. Quando isso acontece, a Igreja fica definida, uma vez mais, a partir do poder. Se, ao contrário, é mestra mystagógica, não impositiva, e ensinando não somente por palavra mas com o exemplo, então, também gera vida enquanto mestra.
3. a Igreja dos pobres
Ellacu, falaste da Igreja dos pobres com criatividade e originalidade, sem reduzir a novidade de Medellín à "opção pelos pobres". A verdadeira Igreja "é" uma Igreja dos pobres, não somente "para eles". João XXIII o proclamou e perguntaste o que dela havia permanecido no concílio. Não muito, é a verdade. O Cardeal Lercaro insistiu nisso com clarividência e paixão. E de Monsenhor Himmer, bispo de Tournai, citavas esta frase lapidar: primus locus in Ecclesia pauperibus reservandus est (temos que reservar aos pobres o primeiro posto na Igreja).
E essa Igreja é a mais verdadeira, se me permite falar assim, por uma razão teologal, a qual tampouco se costuma dar a devida importância. Escreveste: "a união de Deus com os homens, tal como se dá em Jesus Cristo, é historicamente uma união de um Deus ‘inserido’ / ‘esvaziado’ em sua versão primária ao mundo dos pobres". Temos que explicar bem isso; porém, creio que queres dizer que a Igreja será verdadeira presença de Deus se está feita do que Deus elegeu para tornar-se, Ele, presente entre nós. Com nada se pode diluir a centralidade da "Igreja dos pobres".
Sobre essa Igreja escreveste, em 1979, e a ela voltaste em teu último escrito, em 1989. Assim termina o texto: "a Igreja dos pobres se constitui no novo céu, que se necessita para superar a civilização da riqueza e construir a civilização da pobreza, nova terra, na qual habite, como em um lugar acolhedor e não degradado, o homem novo". Igreja dos pobres e civilização da pobreza foram tua utopia, que formulaste desde a fé e desde a história. Ellacu, ambas coisas ficaram esquecidas, e é urgente voltar a elas. Porém, agora, mesmo que brevemente, quero mencionar duas notícias de pobres e ricos que nos preocupam.
Acabam de nos dizer que, atualmente, 923 milhões de seres humanos passam fome e desnutrição em todo o mundo. São 75 milhões a mais do que no ano passado, apesar de que o mundo é mais rico do que nunca e que as colheitas de 2007 bateram recordes. Por detrás do incremento no número de pobres, está a subida do preço dos alimentos entre 2007 e 2008, em 52% em média. Alguns produtos básicos, como o arroz, sofreram um incremento de mais de 200%. E a essa tragédia se junta o que o escritor José Saramago chama de "crime (financeiro) contra a humanidade": o cataclismo financeiro, produto do egoísmo e com total impunidade. Pago pelos pobres. Diante disso, é bom ensinar a doutrina social da Igreja; porém, não basta. Faz-se necessária uma profecia estrondosa. A Igreja dos pobres deve fazer ambas coisas. E, sobretudo, deve fazer a segunda.
E uma última coisa. Jesus nos disse que o reino de Deus é dos que são como as crianças, e que não devemos seguir o exemplo dos que governam este mundo, os grandes. Também na Igreja temos que ser pequenos e servidores; porém, isso continua sendo um grande problema. Dito com simplicidade, à Igreja custa-lhe deixar de estar acima e costuma aferrar-se à sua dimensão hierárquica. É o que dizem nossos amigos jesuítas de Cristianisme i Justícia, em Barcelona. Acabam de publicar um caderno sobre como está a Igreja, e recordando a Rosmini, mencionam "as novas ‘cinco chagas’ da Igreja". A primeira, a principal, é não ser Igreja dos pobres e esquecer-se deles; porém, também mencionam o excesso de hierarquia, de poder institucional e de centralismo romano. E chamam a atenção para o fato de que, diante das críticas, a Igreja reage à defensiva, "sem parar nem um minuto para perguntar-se se terá feito algo mal". Esse é um sério problema eclesial. Torna difícil a solidariedade no interior da Igreja: ser "povo de Deus", todos com a mesma dignidade.
Entre nós, também existem problemas na Igreja. Menciono um que me parece importante: creio que existe excessiva prudência e minguada liberdade, como se o povo de Deus tivesse medo de deixar ouvir sua palavra. As reuniões de gente de Igreja não se parecem com as de antes, com diálogo, discussões e decisões a serem postas em prática, como corpo. Evidentemente, aqui, sim, temos que dizer que eram outros tempos: que fazer após o assassinato de Rutilio e do Chino Navarro? Tampouco se pode esperar que aconteçam semanas de pastoral que se pareçam com as que aconteceram nos anos setenta. Porém, sim, que aconteça algo de parresia, como a de Paulo.
Nossos irmãos de Barcelona, ao terminar suas reflexões, dizem que "teria sido mais cômodo e menos perigoso fechar os olhos e dedicar-nos a uma vida mais tranqüila"; porém, preferiram falar, com respeito, com ânimo de diálogo, sem pretender ter toda a verdade. E terminam "testemunhando abertamente nosso amor à Igreja". Nos somamos a tudo isso, pois isto somente pode ajudar. Por certo, o livro de Rosmini, de 1832, foi colocado no ‘Índice’. Agora está em marcha o processo de beatificação de seu autor. Um bom sinal...
Ellacu, isto é o que eu queria contar-se. Em meio. Em meio às venturas, a graça de mártires e pobres com esperança, e às desventuras, nossa pequenez e pecados, recordamos, resistimos e caminhamos. E meu desejo é que os "princípios" que recordei: o reino, a maternalidade e a Igreja dos pobres nos ajudem a manter -o retomar- o rumo salvadorenho e romeriano do caminhar da Igreja.
* Carta A Ignacio Ellacuría, escrita por Jon Sobrino. Disponível em <http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=35809>. Tradução: ADITAL.
NOTAS EXPLICATIVAS:
Jon Sobrinho - Teólogo jesuíta, nascido em Barcelona (Espanha), em 1938, e residente em El Salvador desde 1957. Foi assessor de Dom Oscar Romero, arcepisbo de El Salvador, assassinado no início dos anos 80 pelos militares daquele país. Em março deste ano, Sobrinho foi punido pela Congregação Vaticana para a Defesa da Fé com a penitência do silêncio perpétuo (‘per saecula saeculorum’). Segundo o Vaticano, as proposições de Sobrino "não estão em conformidade com a doutrina da Igreja".
Ignacio Ellacuría - Jesuíta, filósofo, discípulo de Zubiri, reitor da Universidade Centro-Americana de El Salvador, foi barbaramente assassinado, juntamente com mais cinco jesuítas e uma senhora e sua filha, no dia 15 de novembro de 1980, em El Salvador.