A vocação natural do ser humano

Em artigo anterior, eu afirmava que o resgate da dimensão política da vocação das lideranças cristãs tem como referência a prática de Jesus de Nazaré. Mas dizia também que ela passa pelo resgate da dimensão humana da vocação. Lembrava que os desequilíbrios humano-afetivos fazem com que as lideranças cristãs tenham medo de se comprometer com a defesa do povo e as levam a se colocarem do lado dos poderosos e corruptos. Afirmava ainda que os desequilíbrios humanos e afetivos não permitem a coragem de derramar o sangue na defesa do povo, como fez Jesus.

Para ilustrar isso vou servir-me de um caso que aconteceu há algum tempo atrás. Era, como agora, período de eleição municipal. O pároco de uma cidade do interior do nordeste brasileiro estava apoiando a re-eleição do então prefeito. Este prefeito tornara-se conhecido na região pelas suas mazelas: desvio de dinheiro público, obras sem licitação, sucateamento da saúde e da educação, além de tantas outras coisas. Ao mesmo tempo era visível o seu enriquecimento. Depois de quatro anos na prefeitura havia aumentado em muito a sua fortuna. Não havia como justificar tanto enriquecimento em tão pouco tempo. Tinham sido apresentadas contra eles várias denúncias. As provas eram evidentes, mas ele conseguiu comprar a Câmera de Vereadores, formada também, na sua maioria, por picaretas e lobos vorazes, ávidos de dinheiro. A Justiça, com a sua morosidade e a sua cumplicidade não havia resolvido a questão.

O padre da cidade estava claramente do lado do prefeito corrupto e ladrão. Deixava bem clara a sua opção. Embora não fizesse campanha aberta de cima do altar, em todas as missas e oportunidades não faltavam palavras de elogios ao prefeito e de agradecimento, mesmo tendo ele clareza de que o dinheiro de ajuda para a Igreja vinha dos desvios de verbas e das falcatruas do prefeito. Mas, entre outras coisas, o padre tinha sempre o seu carro abastecido de combustível. Bastava passar no posto e encher o tanque. A prefeitura depois pagava.

Eu conhecia a história daquele padre. Vinha de família pobre, onde a fome esteve sempre na ordem do dia. Fora levado para o seminário, onde, em pouco tempo, ele aprendeu que ser padre era a única profissão do mundo na qual, ao terminar a faculdade, a pessoa tinha trabalho assegurado, acompanhado daqueles famosos oito "cês" gratuitos, pagos com o dinheiro do povo: casa, comida, cozinheira, carro, computador, conta bancária, celular, cartão de crédito. Estava com a vida feita. Durante o seu tempo de seminário apresentou vários desequilíbrios humano-afetivos. Como demonstrava muitas habilidades, fora encarregado do dinheiro do seminário. Várias vezes ele sumiu com o dinheiro que era do seminário, apresentando versões estranhas, como, por exemplo, a de que tinha sido assaltado.

Certa vez foi pego durante a noite assediando o seu vizinho de quarto de seminário. Tentava violentar de maneira horrível o seu colega que, por sinal, também se tornou padre e continua até hoje traumatizado. Mais recentemente, já padre, foi surpreendido várias vezes "alisando" crianças. Numa delas estava sentado no colo de um adolescente, enquanto o "ensinava" computação. Quem o viu, praticando tais atos de pedofilia preferiu se calar, pois, afinal de contas, ele era "o pároco".

Ficava muito evidente para mim que aquele padre carregava dentro de si um tremendo desequilíbrio humano-afetivo. Isso lhe impedia de ser livre para assumir uma postura de pastor na defesa do povo. Por isso era um mercenário. A direção do seminário tomou conhecimento da sua situação. O reitor, homem conhecido por sua integridade, se opôs à sua ordenação, mas, como costuma acontecer, as aparências e as urgências (falta de padre) prevaleceram. Deram-lhe um tempo para "pensar", mas pouco depois ele era ordenado. Ele aprendeu a "se comportar direitinho"! O sistema eclesial vigente não permite que se leve a sério certas coisas. Prefere fazer vista grossa e apoiar a hipocrisia. Para ser ordenado basta o menino cultivar as "três devoções brancas": à hóstia, a Maria e ao papa. O restante, por mais grave que seja, não conta, mesmo que na teoria se diga o contrário.

Portanto, esse caso demonstra que é preciso cuidar mais da questão da antropologia da vocação. Trata-se de ajudar o vocacionado ou vocacionada a perceber que, mesmo antes de seguir Jesus Cristo, o grande chamado é para ser humano com os demais humanos da Terra. É aquilo que o Guia Pedagógico de Pastoral Vocacional da CNBB (pp. 26-29) chama de "vocação natural". Nesta vocação estão incluídas características e exigências comuns a qualquer ser humano. Entre estas características o Guia Pedagógico menciona: a) a capacidade de se relacionar; b) de dialogar; c) de viver em grupo; d) a vocação política, entendida como disposição a participar ativamente da construção do bem comum; e) a disposição para o trabalho, o qual não deve ser visto só como ganha-pão, mas como forma concreta de servir à humanidade; f) a vocação para a liberdade; g) a capacidade para a oblatividade, entendida como disposição à renúncia e ao sacrifício em favor do bem da coletividade.

O Guia Pedagógico afirma que nenhum tipo de vocação específica cristã pode anular estas que são dimensões da vocação à existência ou vocação humana. Elas são características de todo ser humano e exigências da natureza humana. Não são qualidades cristãs. O cristianismo, em Jesus Cristo, apenas plenifica o que a criação divina já realizou. Acredito que é preciso dar muito peso à antropologia vocacional, pois, como vimos, muitos dos problemas encontrados depois na vivência da vocação específica (leiga, vida consagrada e ministerial) estão enraizados na ausência do cuidado com o humano. Pretende-se que a pessoa seja cristã quando ela nem sequer é humana com os demais humanos do planeta.

Às vezes me entristeço por ver que na Igreja, nas casas de formação e nos seminários isso não é levado a sério. A questão é tratada com muita superficialidade, mesmo porque uma mudança profunda neste campo exigiria uma série de outras mudanças que iriam revolucionar a Igreja. E as lógicas do poder eclesiástico dominante não permitiriam tocar em certas coisas. E o resultado disso é o que vemos, como no caso que narrei. Fato verídico do qual omiti maiores dados por razões óbvias. E o povo "paga o pato", sofre, é injustiçado, humilhado e traído por quem deveria estar do seu lado para amparar e proteger.


* Artigo escrito por José Lisboa Moreira de Oliveira. Filósofo. Doutor em teologia. Foi assessor da CNBB. É gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião, da UNB. Professor de Antropologia da Religião e Ética. Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional.