O Deus que desafia seu próprio culto - Renold J. Blank

O Deus que desafia seu próprio culto
(Primeira publicação: REVISTA DE CULTURA TEOLÓGICA No. 39 (X), abr./jun. 2002)



Renold J.Blank

Quando Deus se revela, causa espanto, e tal espanto, muitas vezes se torna até escândalo.

Escândalo para o mundo que está sendo julgado pelos parâmetros, revelados por este Deus . Disso somos acostumados e até sentimos uma certa satisfação em ouvir Deus reprimir com palavras duras os ímpios e os imorais, que com obstinação renovada resistem aos mandamentos dele.

Quando Deus reage contra tais atitudes daqueles que consideramos pecadores, estamos do lado dele, e junto com ele criticamos este mundo tão afastado de Deus.

Assim, todos os piedosos ficam satisfeitos, e os defensores da reta ordem se sentem confirmados na sua convicção.

Mas, os mesmos seguidores, que em alta voz sustentam as duras críticas a um mundo que cada vez mais se secularizou, por sua vez se escandalizam muito, quando este Deus, por acaso, se atrevesse em questionar a maneira deles de compreender a religião ou de celebrar o seu culto.

Uma tal intervenção dele nas coisas de caráter sacral, não podem tolerar, e por causa disso se apressam em falar da importância de manter intocável a dimensão sacral e a beleza dos cânticos emocionantes em louvor ao Deus santíssimo.

Mas, é exatamente nisso, que se chocam com um Deus, que, como tudo indica, não se interessa muito por aqueles cânticos; basta ler o famoso texto do Profeta Amos, transmitido em Am 5, 21-24.

"Odeio, desprezo vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos, não me agradam vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, não quero ouvir o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como rio caudaloso!"

A dimensão do sacral, pelo menos quando ouvimos o que o profeta diz aqui, não parece entusiasmar muito este Deus. Tal conclusão se impõe não só a partir do texto acima, mas da mesma maneira também a partir do primeiro capítulo de Isaias ( Is 1, 6-17), e em base à atitude de Jesus, para o qual, a misericórdia é bem mais importante que todos os sacrifícios sacrais, realizados no santuário de Deus ( cf. Mt 9,13).

Quando Deus se revela, aparece um Deus, que em muito não corresponde às imagens sacrossantas e transcendentes, que durante milênios, os seus adoradores construíram dele.

Quando ele se revela, questiona e muitas vezes rejeita exatamente aquelas imagens.

Tal fato já vem a tona na primeira ocasião, onde este Deus se manifesta; o Deus que mais tarde será chamado Javé, mas que na época era conhecido simplesmente como "o Deus de Abraão".

Num contexto religioso, onde em todas as culturas em torno, as divindades estavam do lado do poder vigente, aquele Deus se revela como sendo um Deus, que em nada se interessa pelo poder dominante e suas perspectivas do mundo.

Em vez de manifestar-se no palácio do Faraó ou nos salões sumptuosos dos reis de Ur, ele dirige a palavra a um desconhecido, um semi-nômade, fora de todas as estruturas da sociedade estabelecida; Abraão.

Em vez de exigir uma reforma litúrgica no culto dos templos de Memphis, por exemplo, o Deus deste Abraão convida para uma caminhada, cujo fim permanece na incerteza de uma promessa que ninguém, na época, pode garantir.

Em vez de mandar construir para si-mesmo um Templo e estabelecer um culto, este Deus escandaloso para todo representante das religiões estabelecidas da época, este Deus se contenta em assumir ele mesmo as características de um Deus migrante, um Deus que acompanha o grupo dos seus seguidores. Outra novidade total, num mundo religioso, onde era evidente que os seguidores tinham que acompanhar o seu Deus e deslocar-se ao lugar, onde este se encontrava.

Aqui constatamos o contrário. O Deus em questão se desloca, para acompanhar os homens.

"...eu estarei contigo e te abençoarei".(Gen 26,3)

" Estou contigo e te guardarei aonde quer que vás, e te reconduzirei a esta terra. Nunca te abandonarei até cumprir o que te prometi”. (Gen 28,15)

Exatamente por causa desta sua característica, porém, este Deus se torna capaz de acompanhar todas as mudanças sociais e culturais, pelas quais, nos séculos seguintes, o grupo de seus seguidores passará.

Enquanto que as outras divindades dos clãs de Canaã se fixaram num lugar, num monte, num templo, de tal maneira que cada mudança geográfica ou social os afastava mais de seus antigos seguidores, o Deus de Abraão se revela um Deus "no caminho", um Deus que acompanha a história e que exatamente por causa disso, se torna capaz de manter-se fiel ao seu povo, mesmo quando este se desloca para outras terras, para outros países, para outros contextos culturais, sociais e até religiosos.

A sua preocupação não é aquela de ser venerado em algum santuário, mas aquela de acompanhar a caminhada histórica daqueles que nele crêem. E quando esta caminhada os conduz numa situação de escravidão, eles se tornam capazes de superar tal escravidão, movidos pela força deste Deus, e incentivado pela convicção de que o seu Deus não quer uma situação de opressão e de exploração.

O Deus de Abraão se revela sendo um Deus que ama a liberdade, não só a dele mesmo, mas também aquela dos seus seguidores.

Em nome desta liberdade, também nos séculos seguintes, ele não se deixa enclausurar nem num templo, nem num culto.

O seu templo é a história e o seu culto é a conquista de uma vida cada vez mais plena das pessoas humanas, isto sobretudo quando estas pessoas se encontram em situações subumanas de exclusão, de marginalização ou de pobreza. O culto que ele aprecia, é aquele, onde se supera todo tipo de opressão por parte de algum poder que se julgava melhor, seja ele político, econômico, social ou até religioso.

Tal atitude deste Deus, porém, está em oposição a todos os costumes religiosos de sua época. Ela também não corresponde aos interesses daquelas classes dominantes, que sempre justificaram o seu próprio poder pelo poder e a ostentação do culto de seu Deus.

Passada uma história de quase três séculos, a influência desta ideologia do poder alcança também os arredores do Deus da liberdade de Israel. Assim, assistimos na época do rei Salomão ao fato escandaloso, que o Deus itinerante do deserto, o Deus da liberdade, por razões políticas e de poder, por sua vez está sendo assentado num templo. E a construção deste templo repete exatamente aquela situação de escravidão, da qual o povo tinha escapado três séculos antes em nome daquele Deus, para o qual agora realizam trabalhos forçados.

A reação do Deus da liberdade, contra tal abuso e deturpação de suas verdadeiras intenções, não demora.

É pela boca de profetas, que se formula uma crítica cada vez mais acentuada contra um culto, que este Deus nunca quis e nunca pediu.

Já na época quando a questão da construção de um templo ainda está sendo discutida, a atitude daquele, para o qual querem construir tal templo, é bem clara: Ele não o quer:

‘Assim fala o Senhor : Para que me queres construir uma casa para minha residência? 6 Pois eu nunca morei numa casa, desde quando tirei do Egito os israelitas até o dia de hoje, mas andei vagueando em tendas e abrigos. 7 Durante todo o tempo que andei vagueando entre todos os israelitas, jamais falei a uma das tribos de Israel que encarreguei de pastorear o meu povo de Israel, que me construíssem uma casa de cedro!’ ( 2 Sam 7, 5-7)

A vontade pelo poder dos seus seguidores, porém, é mais forte que a voz de Deus, e assim constróem o templo contra a vontade daquele, para o qual é destinado.[1]

Estabelecem um culto para o Deus, que nunca quis culto.

Na época de Salomão, toda uma ideologia do poder faz de tudo, para desviar a atenção das fulminantes violações da vontade original daquele Deus, que no êxodo se tinha revelado como um Deus oposto a toda e qualquer forma de escravidão e de opressão. Agora, porém, se constrói para ele um templo, usando os mesmos mecanismos de escravidão, que tinham motivado o agir deste Deus contra o Faraó.[2]

O esplendor de sua nova casa, que ele não quis, foi destinado a fazer calar este Deus incômodo e rebelde, que não quis ser assim como todas as outras divindades em torno dele.

John Bright, na sua História de Israel, descreve esta atitude alternativa e incômoda do Deus de Israel em relação ao culto de maneira muito clara: "Iahweh não era um mantenedor benigno do status quo, que devesse ser ritualmente acalmado, mas um Deus que chamou seu povo de um status quo de negra escravidão para um novo futuro e que dele exigiu obediência à sua justa lei".[3]

O Deus, pelo qual realizaram um culto cheio de esplendor, não se deixou acalmar pelos ritos bonitos.

Em nada adiantaram os cânticos e as cerimônias sacrificiais.

O Deus, para o qual se tinha construído um Templo tão luxuoso que nem os templos dos Deuses da Fenícia podiam concorrer com ele[4], este Deus se revela sendo um ingrato total. Em vez de pelo menos agora calar-se sobre os trabalhadores escravizados, que tinham construído a sua sede [5], em vez de contentar-se com um culto, cujo suntuosidade excedia todas as celebrações dos outros Deuses[6], de novo começa a reclamar. Parece que toda esta ostentação de um culto sacral em nada o impressiona.

Mais alto que todos os corais e hinos, com os quais tentaram fazer calar a voz deste Deus rebelde; com maior insistência que toda a pompa de um culto grandioso, celebrativo e repleto de louvores à glória do Altíssimo, se faz ouvir também nos séculos seguintes sempre de novo a voz dele, indomável, não impressionado por nenhuma ostentação de um culto sacral, elaborado com acribia e muito zelo pelos seus domesticadores religiosos: [7]

O Deus que se revelou a Abraão como Deus migrante, também nos séculos seguintes a Salomão, escandaliza todos os defensores dos cultos sacrais e todos os representantes do poder.

Porque contra todos os costumes da época e contra todas as regras estabelecidas sobre o relacionamento entre os homens e seu Deus, não dá o mínimo valor a atitudes cúlticas e lugares santificados.

Em vez disso, sempre de novo, renova pela boca dos profetas a sua opção contra o poder e contra toda ostentação de rituais suntuosos e brilhantes, em cuja sombra continuavam ou se renovavam atitudes de desprezo daqueles, pelos quais este Deus sempre optou: As pessoas humanas e sua dignidade.

É neste sentido que Pixley, com toda razão, pode caracterizar o agir dos profetas em termos de uma constante contestação: Eles "ficam do lado do povo contra seus opressores, incluindo os reis, sacerdotes, escribas e até os reformadores deuteronômicos". [8]

Eles ficaram do lado do povo, assim como o próprio Deus ficava do lado dele, rejeitando um culto que tentava, de maneira consciente ou inconsciente, ofuscar a dura realidade do abandono do Deus verdadeiro. Tal ocultação até podia esconder-se atrás de um culto bonito e cheio de orações, mas nos olhos de Deus, toda oração se torna vazia, frente a uma realidade histórica, onde se despreza a vida humana e sua dignidade.[9]

É este fato, desprezado na época da mesma maneira como muitos vezes também hoje, que vem a tona na dura crítica de Isaias:

"Que me importa a abundância de vossos sacrifícios? –diz o senhor . Estou farto de holocaustos de carneiros e de gordura de animais cevados; do sangue de touros, de cordeiros e de bodes, não me agrado. Quando entrais para vos apresentar diante de mim, quem vos pediu para pisardes os meus átrios? Não continueis a trazer oferendas vazias! O incenso é para mim uma abominação! Não suporto neomênia, sábado, convocação de assembléia: iniqüidade com reunião solene! Vossas neomênias e vossas solenidades, eu as detesto! Elas são para mim um peso, estou cansado de suportá-las. Quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos. Ainda que multipliqueis a oração, eu não ouço: Vossas mãos estão cheias de sangue! Lavai-vos, purificai-vos. Tirai a maldade de vossas ações de minha frente. Deixai de fazer o mal! Aprendei a fazer o bem! Procurai o direito, corrigi o opressor. Julgai a causa do órfão, defendei a viúva". (Is 1, 11- 17)

Em desprezo total a qualquer esforço de sacralização cúltica, irrompe nestas palavras outra vez a exigência original de um Deus que deste o primeiro momento de sua revelação a Abraão, se tinha mostrado um Deus em favor dos homens, um Deus que zela pela vida deles e pelo seu bem estar, um Deus, para o qual, todo culto e toda sacralização, caso primeiro não se cuide da pessoa humana e de suas necessidades, é pura hipocrisia [10].

Diante de um culto religioso que se isola dentro de uma adoração religiosa, enquanto fora disso, "uns oprimem, enganam, se aproveitam da fraqueza de outros, isolam, exploram, e deixam com fome os seus irmãos"[11], diante de um tal culto, Deus " esconde os seus olhos" (Is 1,15).

Contra uma tendência de séculos, onde os seus seguidores sempre de novo insistiam em estabelecer cultos e cerimônias sacrais e sacralizados, o Deus de Israel se mantém indiferente a tais cerimônias e as rejeita, quando elas se sobrepõem à preocupação com a vida das pessoas humanas. Os seus profetas acusam tais cultos "de mentirosos, porque não revelam o verdadeiro rosto de Deus, mas funcionam como uma cortina de fumaça que encobre todo tipo de injustiça. Numa sociedade injusta, mesmo com um Templo, Deus não está ( Jr 7,1-21)".[12]

Tal rejeição de um culto vazio culmina na atitude de Jesus, frente ao centro religioso e cúltico de sua época, o Templo.

O Deus que se tornou homem, rejeita o lugar, onde pretendem celebrar sua honra.

O Deus encarnado despreza as cerimônias, através das quais encobrem com incenso litúrgico as violações dos direitos dos pobres e o desprezo das necessidades básicas dos homens.

Não é o culto a Deus em si, que está sendo rejeitado, mas toda a ideologia, que usa o culto, para encobrir interesses de poder, interesses ideológicos e até interesses econômicos ou religiosos.

Um culto que não conscientiza para aquilo que é o verdadeiro interesse de Deus: a vida humana, um tal culto, está sendo declarado falso. Este fato, que já aparece de maneira acentuada nas muitas críticas proféticas ao culto do primeiro templo [13], está sendo renovado e acentuado na ação de Jesus contra "a sustentação ideológica, dada a um falso culto a Javé".[14]

Jesus privilegia "o amar sobre o prestar culto, o ser puro e o saber sobre Deus".[15]

E em vez de vigiar com olhos severos a observância das leis e dos códigos de direito religioso, o interesse dele se dirige para aqueles que foram esmagados e condenados por estes códigos, pelas suas leis e seus guardiões sacrais.

MISERICÓRDIA QUERO, NÃO SACRIFÍCIOS ! ( Mt 9,13; 12,7; Os 6,6)

Tal palavra, pronunciada por dentro de uma estrutura fixada em cima de um legalismo religioso acentuado, deslegitimiza de vez todo e qualquer legalismo, mesmo estando este sustentado pelos argumentos mais sacralizados que se pode imaginar.

O Deus encarnado, Jesus, não se interessa pelas leis religiosas e as suas celebrações cúlticas, quando estas leis esmagam o ser humano.

se estiveres diante do altar para apresentar tua oferta e ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa tua oferta lá diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e então volta para apresentar tua oferta. (Mt 5,23)

Os fariseus e escribas perguntaram, pois, a Jesus: “Por que teus discípulos não seguem a tradição dos antigos e comem o pão com mãos impuras?”6 Jesus lhes respondeu: “Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando escreveu:

"Este povo me honra com os lábios mas o coração está longe de mim; em vão me prestam culto, ensinado doutrinas e preceitos humanos." (Mc 7,5-7)

O culto que interessa a Deus, se realiza na transformação das relações inumanas e na conversão das condições opostas ao amor. Cada um que não se engaja nesta tarefa, e em vez disso corre em nome de seu Deus para defender a importância do sistema sacral e santificado pela tradição, Jesus o chama de hipócrita.

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que por fora limpais o copo e o prato mas por dentro estais cheios de roubo e cobiça.26 Fariseu cego, limpa primeiro o copo por dentro, para que fique limpo também por fora. (Mt 23, 25-26)

Tal atitude negativa vai até o ponto a rejeitar não só o culto de uma instituição religiosa que se tinha tornado vazia, mas esta instituição como um todo.

Nos olhos de Jesus, uma instituição religiosa que não põe a pessoa humana e sua dignidade no centro de toda a sua atenção, perde a sua razão de ser.

Jesus respondeu: “Destruí este Santuário e em três dias eu o levantarei”
(Jo 2,19, também: Mc 14,58; 15,29)

Quando Jesus saiu do Templo, um dos discípulos lhe disse : “Mestre, olha que pedras e que construções!”2 E Jesus lhe disse: “Vês estas grandes construções? Não ficará aqui pedra sobre pedra; tudo será destruído”.(Mc 13,1-2)

É nesta última profecia de Jesus que culmina a sua rejeição de um culto que se tornou idolatria. Ela está sendo desmascarada como estéril e hipócrita, e por causa disso, deve desaparecer. Mas, não só o falso culto deturpado vai desaparecer, mas também a instituição, na qual este culto se realiza. Todo o sistema religioso que sustenta tal culto , perde a sua legitimidade ( cf. Mc 11,28-12,11; 12,38-40) e os seus defensores estão sendo chamados de "hipócritas" (Mc 12, 15, Mt 23,1-29). Assim, o tipo de culto, representado pelo templo, está sendo rejeitado. Deus não se interessa por sacrifícios e holocaustos, nem por louvores festivos e celebração em sua honra, enquanto que ao lado se esmaga pessoas humanas. "Com Jesus se inaugura uma nova forma de relacionamento entre Deus e a humanidade (Mc 13,2; 14,58)."[16]

Esta nova forma, na sua essência, é a realização de tudo aquilo que os profetas já defenderam em nome de Javé. E no seu centro deve estar a celebração da convivência humana, assim como ela foi realizada naquela ceia da quinta feira santa. Gesto grandioso e simples ao mesmo tempo, onde a concretização da fraternidade está sendo concentrada até o seu cume mais extremo.

A partir daquele momento, a critério básico de toda celebração se torna a maneira como se realiza a convivência entre os homens e as mulheres. Ali onde esta convivência não se baseia na fraternidade, na justiça, no amor e na misericórdia, todo louvor cúltico a Deus se torna para este Deus pura " insensatez e troça, e isso permanece válido, mesmo quando aquele que reza, não tem em nada esta intenção".[17]

Carlos Bravo Gallardo, na sua interpretação do agir de Jesus no Templo, destaca tal fato de maneira muito acentuada. No agir de Jesus, diz ele, "não se trata de uma 'purificação' do Templo, que lhe permitisse continuar como Centro de Israel, uma vez purificada, mas de uma 'tomada' do Templo, que suspende definitivamente a sua atividade".[18] Ela está sendo suspensa, porque em vez de amar ao pobre e defender os seus direitos, a sua atitude cúltica se esgotou num legalismo que virou opressão para o povo. Com isso, porém, tal culto se tornou excludente, dificultando e impossibilitando o acesso a Deus em nome de exigências de uma lei que se tornou mais importante que o amor.

“Os escribas e os fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. 3 Portanto, fazei e observai tudo o que eles vos disserem, mas não os imiteis nas ações, porque eles dizem e não fazem.4 Amarram pesadas cargas e as põem nas costas dos outros, e eles mesmos nem com o dedo querem tocá-las.(Mt 23, 2-4)

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais o reino dos céus aos outros! Não entrais vós nem permitis que entrem os que o desejam (Mt 23,13).

O acesso a Deus, segundo Jesus, "não se dá através de gestos purificadores nem sacrificiais"[19] . O que a Deus agrada, não são os cânticos cúlticos, nos quais ele está sendo chamado de "Senhor, Senhor", mas a realização do amor e da justiça diante dos irmãos e irmãs. Eis o verdadeiro culto que agrada a Deus.

Mt 7, 21 : Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no reino dos céus, mas quem fizer a vontade de meu Pai que está nos céus.

Esta mensagem já foi repetida inúmeras vezes no decorrer da história de Israel pelos profetas.

Em Jesus e com a sua rejeição do Templo, ela alcança toda a sua radicalidade final.

Tal atitude, porém não agrada a todos aqueles, que querem situar Deus exclusivamente do lado das coisas sacrais, e estabelecer um abismo entre estas dimensões e o assim chamado mundo profano. Ela não agrada nem na época dos profetas, nem na época de Jesus e, às vezes, nem nos dias de hoje.

Do tempo dos profetas, temos um exemplo explícito da reação daqueles, que não querem ouvir um tal recado:

O representante do culto sacral reage à palavra crítica do profeta Amós, proibindo que este profetize.

Amazias, sacerdote de Betel, ordenou a Amós, o profeta, dizendo: "Retira-te daqui, foge para o pais de Judá; come lá o teu pão e profetiza lá. Mas em Betel já não poder profetizar, porque é um santuário do rei..." (Am 7, 12)

Assim ordenou o sacerdote.

E atrás dele, havia toda a hierarquia do poder religioso e político de sua época, do poder dos estudiosos da fé, do poder daqueles que em nada quiseram ser criticados, porque haviam- se acostumado a ordenar. Haviam- se acostumado a serem obedecidos. Haviam- se acostumado a mandar em nome de Deus, cujos únicos intérpretes eles se tinham declarados.[20]

Contra toda a vontade deles, porém, e contra toda a tentativa de fazer calar o profeta, a voz dele continuou a soar:

"Amós respondeu e disse a Amasias: 'Não sou profeta nem filho de profeta; eu sou vaqueiro e cultivador de sicômoros. Mas, o Senhor tirou-me de junto do rebanho e me disse: 'Vai, profetiza a meu povo, Israel ! E agora, ouve a palavra do Senhor: Tu dizes: Não profetizes contra Israel e não fales contra a casa de Isaac. Por isso, assim diz o Senhor: "Tua mulher se prostituirá na cidade, teus filhos e filhas cairão pela espada, tua terra será dividida a cordel. Tu morrerás em uma terra impura e Israel será deportado para longe de sua terra".

Palavra de Javé !

Arrogante aos ouvidos do sacerdote Amasias.

Arrogante aos ouvidos de todo poder.

O poder não gosta de profetas, e por causa disso, tenta deslegitimá-los com a arrogância do poder.

A vida e morte de Jesus, oito séculos mais tarde, se torna exemplo fulminante para tal fato.

É nas próprias palavras dele que se revela de forma exemplar, como os representantes da mentalidade sacral reagem, quando o Deus de sua veneração se revela sendo diferente da maneira como eles querem que ele seja.

"...vos envio profetas, sábios e escribas. Deles matareis e crucificareis alguns, a outros açoitareis nas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade.35 Por isso cairá sobre vós o castigo pelo assassinato de todos os inocentes, desde Abel, o justo, até Zacarias filho de Baraquias, a quem matastes entre o Santuário e o altar".(Mt 23, 33-35)

Estamos confrontado nestes e em tantos outros exemplos com aquele problema tremendo, que René Girard, nas suas análises dos mecanismos religiosos de projeção, denomina de "Cegueira coletiva".[21]

As pessoas não querem ouvir a verdade. Em vez disso se entrincheiram detrás de seus códigos sacralizados, e em nome daqueles códigos, se tornam dispostos até a matar Deus, quando este Deus não quer concordar com a imagem que eles construíram dele.

Eles matam Deus e matam os seus enviados, e nisso até pensam ainda estar venerarando a Deus. Para Jesus, tal atitude só pode ser chamada de Hipocrisia.

Jesus lhes respondeu: “Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando escreveu:

"Este povo me honra com os lábios mas o coração está longe de mim; em vão me prestam culto, ensinado doutrinas e preceitos humanos. Deixando de lado o mandamento de Deus, vós vos apegais à tradição dos homens”. 9 E Jesus acrescentou: “Na verdade, anulais o mandamento de Deus para firmar a vossa tradição".( Mc 7,6-9)

As análises de Girard, e seguindo ele, também as reflexões de Raimund Schwager mostram, como as pessoas, apegando-se à palavra de leis e de códigos cúlticos e religiosos, encobrem o verdadeiro problema, que é a necessidade de realizar de maneira urgente as reformas necessárias.[22] E para não ser confrontado com a verdade idolátrica de seu agir, se enchem de um zelo religioso cada vez mais acentuado e cada vez mais intolerante contra todos aqueles que se atrevem a criticar a sacrossanta ordem religiosa e cúltica estabelecida. A atitude dos representantes do Templo contra Jesus, se torna exemplo gritante para o resultado de tais mecanismos de projeção e cegueira coletiva.

Refletindo assim sobre um dos grandes paradigmas da história de Deus com o seu povo, descobrimos de novo, como aquela história mantém o seu caráter de sinal, através do qual o próprio Deus adverte a todas as épocas, de não extinguir o Espírito e não desprezar as profecias ( 1Tes 9,19). É neste sentido, que também as palavras de Georg Betz, formuladas no seu livro sobre o perigo da veneração de um falso Deus, se tornam muito mais do que análise sócio-religiosa. Podemos encontrar nelas e em tantas e tantas outras vozes o incentivo do Espírito, que guia a sua Igreja.

"Quando neste pais, no mundo, na Igreja, há tanta coisa assustadoramente falsa, não podemos explicar isto simplesmente como resultado de um afastamento deste mundo das Igrejas.... É também o resultado do fato, que muitas milhões ...Domingo após Domingo, ... pronunciam as grandes palavras de Redenção, de salvação do mundo e de Ressurreição, mas eles não percebem como esvaziaram o sentido original destas grandes palavras, porque cortaram, deturparam e falsificaram o programa de Jesus".[23]

Do antigo culto do templo, a carta aos Hebreus diz que "não agradava a Deus (Hb 10, 5-7), ..., tampouco purificava os homens dos pecados (Hb 10, 1-4) nem conseguia transformá-los (Hb 7,19)".[24]

A reflexão sobre o Deus de Abraão e sua manifestação frente ao culto, nos deixa assim com um grande legado, válido para todos os tempos e em todas as épocas até os dias de hoje: Realizar o novo culto, do qual Paulo fala [25]; centrado em Jesus e "agradável a Deus". Isso, porém significa que as nossas cerimônias manterão como foco primordial e conscientizador aquele tema, que parece ser durante toda a história a primeira e grande preocupação de Deus : A vida humana, a sua dignidade e a transformação de todas as situações, onde esta dignidade está sendo violada e pisada.


* Artigo escrito por Renold J. Blank, autor de diversos livros, dentre eles, "Reencarnação ou Ressurreição: uma Decisão de Fé" e "Deus na história: centros temáticos da revelação"

Notas bibliográficas:


[1] O que se diz aqui sobre o primeiro templo, vale da mesma maneira também para o segundo, do qual, Martin Volkmann, baseado nas Antiguidades Judaicas, Livro XV, cap. 11 de Josefo Flávius, escreve o seguinte:

"Diante o povo, o Templo é colocado como sendo uma obra para a glória de Deus. Na realidade, porém, é renovado e ampliado "para que se torne um monumento digno, não tanto um monumento a Deus, a quem ele está dedicado, mas antes à glória daquele rei que o edificou como sua obra"". ( cit. cf.: Martin Volkmann, Jesus e o Templo, São Paulo, Paulinas 1992, p. 13)

[2] cf.: Sandro Gallazzi, Por uma terra sem mar, sem templo, sem lágrimas, Petrópolis, Vozes 1999, p. 51ss

também: A leitura profética da história, São Paulo, Loyola 1994, p. 95ss

[3] John Bright, História de Israel, São Paulo, Paulus 1980, p. 207

 

[4] O recinto dos fundos media 10 metros de comprimento e outros tantos de largura e altura. Salomão o mandou revestir de ouro batido; revestiu o altar de lambris de cedro, 21colocando-o diante do recinto dos fundos e revestindo-o de ouro batido. 22Mandou revestir de ouro todo o templo, de cima a baixo; mandou recobrir de ouro também todo o altar destinado ao recinto dos fundos. ( 1 Sm 6, 20-22 ; cf.. a descrição do templo, em 1 Sm 6 na sua íntegra)

 

[5] O rei Salomão recrutou gente para os trabalhos forçados em todo Israel num total de 30.000 homens. 28Cada mês mandava 10.000 homens por turno ao Líbano, de modo a ficarem durante um mês no Líbano e dois meses em suas casas. Adoniram era o chefe dos trabalhos forçados. 29Além disso, Salomão mantinha 70.000 carregadores e 80.000 canteiros na montanha, 30sem contar os 3.300 capatazes, subordinados aos prefeitos de Salomão; eles dirigiam as obras e as pessoas que as executavam. (1 Rs 5, 27-30)

[6] cf. 1 Rs 8

[7] cf. neste contexto : John Bright, História de Israel, p. 349ss : "A verdade é que tinha havido uma perversão íntima na religião de Iahweh... A obrigação da aliança... era concebida como uma questão puramente do culto, cujas exigências poderiam ser satisfeitas".

[8] Jorge Pixley, A história de Israel a partir dos pobres, p. 79

[9] cf. o comentário ao texto seguinte de Isaias, em: Dianne Bergant/Robert J. Karris, Comentário bíblico, Vol. II, São Paulo, Loyola 1999, p. 16: " Deus não demonstra nenhum prazer com o sacrifício constante de animais, nem mesmo com a observância da lua nova e do Sábado... O que importa é a maneira como os cidadãos tratam as viuvas e os órfãos, não a frequência com que vão ao Templo ou oferecem sacrifícios".

[10] cf. a atitude de Jesus, frente ao zelo cúltico-sacral do chefe da sinagoga em: Lc 12, 10-14

[11] Georg Betz, Verehren wir den falschen Gott ? ( Será que veneramos um Deus falso ?), Freiburg, Herder 1993, p. 127

[12] A Leitura profética da história, São Paulo, Loyola 1994, p. 54

[13] cf. em termos de exemplos: Am 5,22ss; Os 8,11ss; Is 1,10ss

[14] Martin Volkmann, Jesus e o Templo, p. 142

[15] Carlos Bravo Gallardo, Jesus, Homem em conflito, p. 303

[16] Martin Volkmann, op. cit., p. 149

[17] Georg Betz, Verehren wir den falschen Gott ?, Freiburg, Herder 1993, p. 130

[18] Carlos Bravo Gallardo, Jesus, homem em conflito, São Paulo, Paulinas 1997, p. 222

[19] Carlos Bravo Gallardo, Jesus, Homem em conflito, p. 314

[20] " Com a sua interdição, Amasias proibe a Javé ele mesmo, de falar... Conhecendo a mensagem do profeta de Javé,...ele se fechou contra a palavra de Deus. Sua posição como sacerdote do santuário... dá à sua culpa ( rebelião contra Deus) um peso muito especial. Por causa disso, Javé vai reagir de maneira exemplar". (Alfons Deissler, Zwölf Propheten, Würzburg Echter 1981, p. 126/127

[21] cf.: René Girard, A violência e o Sagrado, São Paulo, Paz e Terra 1990

também: Raimund Schwager, Brauchen wir einen Sündenbock ?, Munique, Kösel 1978

[22] cf. op. cit, nota anterior

[23] Georg Betz, Verehren wir den falschen Gott, p. 139

[24] Juan Mateos, A utopia de Jesus, São Paulo, Paulus 1994, p. 147

[25] cf. Hb 10, 1-9