Apesar de reconhecermos o risco de equívoco em nosso ponto de vista, pretendemos analisar, a partir dos pressupostos de Vattimo, o caso espiritual/midiático da Madre Teresa de Calcutá e sua "escuridão da fé" e apresentar um esboço de respostas às perguntas levantadas sobre esse caso. Apenas para situar a polêmica em torno do livro Mother Teresa: Come be my light, com as cartas de Madre Teresa endereçadas a seus confessores e superiores, tudo começou quando o editor, Brian Kolodiejchuk, missionário da caridade e um dos requerentes do processo de sua beatificação, deu uma entrevista ao jornal The Times e que foi publicada com os extratos de algumas dessas cartas. Reportagem que gerou um clima sensacionalista sobre a fé de Madre Teresa, com muitas opiniões contrárias. A interpretação que se tornou ortodoxamente a preponderante foi a de que a fé de Madre Teresa retrata a clássica "noite escura" da vida espiritual de João da Cruz, isto é, uma vivência do abandono de Deus correspondente ao total e absoluto abandono de Jesus na cruz, que seria mais propriamente um abandono "em Deus". Ao que parece, embora possível, estranhamente, tal interpretação não foi a da própria Madre Teresa sobre sua experiência - se é que ela poderia tê-la feito durante esta "noite", ainda que, conforme a introdução do segundo livro da Noite Escura, João da Cruz tenha escrito esta obra, antes suspeita de heresia mas agora canônica, para ajudar exatamente aos adiantados na vida espiritual para que compreendessem o que vivia em sua "alma".
Seja como for, em que pese certo sensacionalismo, não consideramos totalmente estéril o mal-estar em torno da "escuridão" de Madre Teresa. A nosso ver, a polêmica condiz com a perda de referenciais teóricos a respeito da espiritualidade. Em seus escritos, conforme o que foi publicado - o que não deixa de ser um sintoma de nossa época -, em vez de evocar um peso de absolutidade na interpretação dessas experiências dolorosas, Madre Teresa as interpretava no sentido contrário: de que tais experiências a ajudariam em sua comunhão com os pobres, que precisam suportar a tribulação do cotidiano. Nas palavras dirigidas a seu acompanhante espiritual, o então jesuíta e hoje cardeal Trevor Lawrence Picachy, ela dizia que a escuridão da fé contribuiria também para que ela se identificasse com os "buracos negros" da vida das pessoas com quem trabalhava. Essa original abordagem de Madre Teresa a respeito de sua própria situação mostra, de modo paradoxal, a eficácia de sua escuridão quanto à evidência objetiva da realidade de Deus. Provavelmente a contragosto de Madre Teresa, a realidade objetiva de Deus seja irrelevante para o reconhecimento secular e plural de nossos contemporâneos quanto ao que seria uma vida espiritual autêntica. O que nos resta e que ainda pode nos "salvar" após a perda do Deus forte do cristianismo, num mundo laico e plural, talvez seja o mais importante da fé: o respeito solidário pelo outro, a cáritas.
Não caberia hoje um conteúdo objetivo da evanecente fé. O que não significa sua negação. Em nossa contingência, não temos acesso à essência objetiva da revelação cristã e, até por isso, podemos ousar uma interpretação laica e plural a respeito da experiência de Madre Teresa. Pouco importa o conteúdo objetivo dos atributos divinos das preambula fidei diante da mística - o que mesmo Tomás de Aquino concordaria, pois na Suma de Teologia, em que pese a metafísica que a sustenta; na mística, o amor traz um acréscimo de determinações, de ordem existencial, ao entendimento, impedindo sua operação natural. De qualquer forma, diante de um mundo pós-moderno, secularizado e niilista - quando se vive etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse), segundo a conhecida formulação de Dietrich Bonhoeffer -, a experiência abissal do não-ser de Madre Teresa, como a deste teólogo-mártir, está em sintonia com o esvaziamento de Deus, agora fraco e sem poder, permitindo o resgate, pós-Auschwitz, da mais alvissareira herança da espiritualidade ocidental e cristã: a cáritas. Afinal: não seria a cáritas o melhor e principal critério hermenêutico trazido pela mensagem evangélica para que se constitua a identidade cristã e valide a autenticidade espiritual, em oposição à violência do "Deus do Holocausto" e em favor de relações amigáveis e sem medo com o divino? Por isso, e, a nosso ver, em consonância com os princípios da perspectiva hermenêutica de Vattimo, o que sinaliza um novo e atual sentido para a espiritualidade após a superação da verticalidade transcendente é, antes de tudo, a capacidade de suportar o cotidiano de luta contra a morte, a minha e a do próximo, e em defesa da vida em sua plenitude.
* Artigo escrito por Marcelo Martins Barreira, professor do Departamento de Filosofia da UFES, mestre e doutor em Filosofia.