Giles Lapouge, no seu artigo sobre a viagem do papa Bento XVI à França (no O Estado de São Paulo, 12/09/2008) diz que diferentemente do João Paulo II que seduzia o povo francês com o seu papel profético e seu jeito de se apresentar em público, "Bento XVI praticamente inexiste no inconsciente francês. Apenas pessoas retêm que ele é inteligente. Mas no quê? Ninguém sabe. É preciso um dicionário de teologia e outro de filosofia para entender o que ele diz, afirma um padre. Isso, responde outro, porque os católicos não têm cultura religiosa".
Qual é o problema? O papa fala muito difícil ou os católicos não têm cultura religiosa?
Se prestarmos um pouco de atenção no que acontece em muitas das nossas igrejas, não é só o papa que não é entendido, mas também muitos dos nossos padres e bispos. Se perguntarmos às pessoas que assistem missas-"shows" de "padres cantores" sobre o que entenderam da missa como um todo e da pregação em particular, muitos dirão que gostaram muito, que foi muito emocionante, mas que não são capazes de dizer qual foi a "mensagem". Se a pergunta for feita às pessoas que vão às missas mais "tradicionais", as respostas serão menos empolgadas, mas também terão dificuldade em dizer exatamente o que o padre quis dizer para as suas vidas com a pregação.
É claro que a vida é mais do que razão discursiva que comunica uma idéia e a participação nas liturgias ou ritos religiosos tem mais a ver com a emoção, experiência de mistério e de pertença a uma comunidade; mas a comunicação de "mensagem" que orienta os rumos e abre novos horizontes de esperança e de caminhada é também fundamental.
O problema da comunicação das "autoridades" das Igrejas com o povo em geral não é um problema exclusivo do atual papa que fala em uma linguagem que exige dos católicos não versados em teologia e filosofia o uso de dicionários. Pois, há padres que também não são capazes de entender o discurso do papa e usam linguagem comum que também não são compreendidos pelo seu povo.
Para que haja uma comunicação, especialmente no campo religioso, é preciso que a fala seja "uma diferença que faça diferença na vida da pessoa". Em primeiro lugar, o interlocutor precisa entender o significado do que é dito. Se esse primeiro passo não se realiza, o processo de comunicação termina antes de começar. Isso é óbvio, mas ocorre muito mais freqüentemente do que pensamos. É, segundo Lapouge, o caso do Bento XVI junto ao povo francês, e, eu acrescento, também de muitas outras "autoridades" religiosas. Pode ser que essas pessoas não tenham percebido que não são entendidas, ou não se importam se são ou não ser entendidas porque no fundo o que desejam é se mostrarem como pessoas que possuem uma verdade "transcendente" (que está além da compreensão do povo comum) e que precisam ser obedecidas. Pode ser também porque os ouvintes, por respeito, medo ou indiferença não expressem que não estão entendendo.
O fato de a mensagem ser entendida, porque a pessoa que fala usa uma linguagem compreensível para ouvinte, não significa necessariamente que ocorreu uma comunicação. Pois a mensagem pode ser algo já conhecido ou ser de nenhum interesse para o interlocutor. Repetição de mensagens já fartamente conhecidas só gera a sensação de perda de tempo; assim como assuntos que não tem nada a ver com interesses, desejos ou problemas dos interlocutores. Portanto, para que a comunicação ocorra, é preciso conhecer o mundo do outro, a sua cultura, as suas preocupações, problemas e desejos. E para conhecer o mundo do outro, é preciso ouvi-lo e estar aberto a ir além dos seus próprios valores e modos de compreender o mundo em que vivem.
Em terceiro lugar, a mensagem entendida e interessante precisa ser capaz de modificar a vida das pessoas que a ouvem. A mensagem ainda não conhecida precisa fazer uma diferença na vida dos interlocutores. Se não, ela será "perdida" ou apagada rapidamente da memória e da vida. Por tudo isso é que dissemos antes que é preciso que seja "uma diferença que faz diferença".
Mas nem toda comunicação que se realiza é um anúncio de uma "boa-nova", Evangelho, nos dias de hoje. Uma doutrina religiosa dita em termos teológicos e filosóficos difíceis pode ser entendida - com o uso ou não dos dicionários -, mas não necessariamente é entendida como uma boa-nova. Seja porque não faz diferença real na vida das pessoas, ou porque só traz repreensões, críticas ou ameaças, mas não suscita nenhum horizonte ou fio de esperança. Isso vale também para muitas das denúncias e críticas feitas, em nome da fé cristã, aos sistemas opressivos aos quais os pobres e oprimidos/as estão submetidos. Uma crítica só se torna realmente comunicação de uma boa-nova na medida em que se transmite, ao mesmo tempo, uma esperança que aponte caminhos factíveis de uma vida melhor e, assim, reconstrói ou aumenta a vivência da dignidade humana de todos/as. Esperanças grandiosas demais que não apontam caminhos factíveis também acabam por não conseguir fazer uma diferença real positiva na vida das pessoas. Podem reforçar a auto-imagem de "radical" de quem fala, mas não comunica uma boa-nova para quem ouve.
O que faz os discursos religiosos/teológicos das Igrejas serem comunicadores da boa-nova não é o fato de serem capazes de aumentar o tamanho, poder ou prestígio das Igrejas e das suas autoridades/lideranças, mas sim a sua capacidade de gerar nas pessoas a vontade de lutar pelo Reino de Deus.
* Artigo escrito por Jung Mo Sung, professor da Universidade Metodista de São Paulo, pós-doutorado em Educação e Doutor em Ciências da Religião. Autor de "Cristianismo de Libertação" (Paulus), dentre outros livros.