A violência e a corrupção institucionalizadas

Abre-se o jornal, liga-se o rádio, vê-se o noticiário na televisão e não há dia em que não se noticie uma operação da Polícia Federal em algum canto do Brasil. Pequenos e grandes peixes são denunciados, alguns são presos. CPIs acontecem em vários cantos do país em relação a governos de diferentes partidos. Às vezes, dá a sensação de que está tudo contaminado de alto a baixo, de baixo a alto.

Já a violência parece também disseminada pelo Brasil, muitas vezes ligada à corrupção. Mortes, assassinatos, áreas inteiras de grandes cidades controladas pelo tráfico, milícias que cobram pedágio de moradores e instituições, medo presente, assaltos.

E são coisas pequenas e grandes. Vai desde os milhões e bilhões desviados até os taifeiros dos generais do Exército transformados em empregadas domésticas, como foi denunciado estes dias. Vai do guarda e do motorista que se ‘acertam’ para que não haja multa, até as grandes negociatas envolvendo agentes públicos e iniciativa privada, em todos os níveis da República.

Ao mesmo tempo, saem todos os dias os números sobre o aumento dos empregos, a melhoria da renda dos mais pobres, políticas públicas que avançaram ou que são lançadas. Esta semana, num seminário sobre o PAA - Programa de Aquisição de Alimentos, todos os painelistas participantes, seja do governo, seja da sociedade civil, avaliavam-no revolucionário, inovador no combate à fome, à miséria, à exclusão social e no fortalecimento da agricultura familiar e camponesa, ainda que cobrassem ampliação de recursos e melhor articulação com outros programas e políticas públicas.

O que está mesmo acontecendo? Parece tudo uma grande confusão de números e informações. O Brasil vai pra frente ou vai pra trás, em que rumo caminha? Avança, retrocede ou está parado?

Não sei se a dificuldade de todos é a mesma minha. Tento ler diferentes análises, participo de muitos debates, ouço muitos relatos na base das comunidades, especialmente na Rede TALHER de Educação Cidadã e no Escolas-Irmãs. Quero entender o momento, a conjuntura, ver se os sinais não estão trocados, ou se a contradição está mesmo nos fatos e acontecimentos.

Considero que, fundamentalmente, continuamos sofrendo as conseqüências das décadas de ditadura e dos anos neoliberais. Como disse o presidente Lula, o Brasil está à busca de encontrar-se a si mesmo. Sua identidade foi roubada (ou sequer foi construída como Nação ao longo de séculos) nestes anos todos. O Estado mínimo, as políticas compensatórias, a privatização do público, o mercado absoluto, a falta de democracia incrustaram-se na sociedade, nas organizações, nas relações econômicas, sociais, culturais, nos valores vividos e praticados. O capitalismo voraz parece ter adormecido corações e mentes. Ou entorpeceu sonhos e futuro. Quem tem entre 15 e 30 anos, os jovens de hoje, cresceu sob o neoliberalismo, seus valores de competição e consumistas. Nunca houve a possibilidade de uma alternativa, nunca houve mais que uma versão, nunca houve os dois lados, porque não interessava ao sistema e às forças dominantes.

Hoje, quando povo começa a comer, os empregos existem em maior número, melhora a renda de setores significativos da população e quando, em algum nível, começa a haver maior combate à corrupção, sem se olhar quem é o investigado ou o preso, se é magro ou se é gordo, se é branco ou se é preto, se é remediado ou se é rico, e há crescente grau de transparência exigido pela sociedade, não pode haver trégua neste esforço de extirpar a corrupção e de criar mecanismos de controle e fiscalização da coisa pública e das suas relações com o privado. O trabalho de superar a violência, em alguns casos pela coerção, mas principalmente pela educação e pela criação de oportunidades, é decisivo para o futuro. É preciso salvar a juventude para poder salvar as crianças. Não é uma tarefa fácil nem de curto prazo. Exige esforço continuado, dedicação, integração de políticas, articulação de forças e movimentos sociais atuantes na construção coletiva de um outro tipo de sociedade. A construção de uma vontade coletiva, especialmente quando ela foi espezinhada em algum momento da história, faz-se no avivamento de consciências, na prática diária incessante de reconhecer o outro e a outra como iguais e diferentes, de fazer as coisas junto, de conviver, de trocar amor e esperança.

A impunidade que ainda premia os poderosos precisa ser denunciada todos os dias implacavelmente. Não se pode ter complacência com nenhuma maracutaia e com nenhum ato de violência  feito contra uma criança, um jovem, uma mulher, um idoso, um ser humano. Se não se permite qualquer gesto contra os animais, a vida de uma pessoa é infinitamente superior e mais valiosa.

Construir valores de solidariedade, de fazer coletivo, de partilha, num tempo onde o exemplo é o Big Brother que cultua o individualismo e o prêmio final em dinheiro, leva tempo. Famílias, comunidades, cada um e cada uma que acreditam num outro mundo possível estão convocados para este mutirão. Percorrendo o Brasil, descobre-se a infinidade de gestos, de ações, de propostas de tantos e tantas que fazem brotar do chão da vida o novo, às vezes quase impossível, mas que acaba vitorioso e ressuscitado. Os que vêm e virão depois de nós agradecem.


* artigo escrito por Selvino Heck, Assessor Especial da Presidência da República.