No início do governo Lula, 2003, o Brasil era o quarto país com pior distribuição de renda do mundo. Só perdia para a Mauritânia, Suazilândia e União Centro-Africana, três países paupérrimos da África. Segundo os últimos informes, 2005/06, o Brasil está em décimo lugar. Houve, pois avanços, avanços significativos a partir do governo Lula, mas o Brasil ainda perde em termos de distribuição de renda para a Venezuela, Bolívia, Paraguai, Chile, Argentina, Uruguai, Peru, enfim para todos os países sul-americanos e a maioria dos africanos.
Estudo recente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) do governo federal lança novas luzes sobre o tema. A partir de dados de rendimento de 2002/03, revelou-se que os 10% mais ricos no Brasil detêm 75,4% da riqueza. Ou seja, num bolo de 100 fatias a ser distribuído para 100 pessoas, 75 fatias ficam para 10 pessoas, sobrando apenas 25 fatias para 75 pessoas. E estamos em pleno terceiro milênio e século XXI, num país que é a décima economia do mundo!
Olhando-se os impostos ou o sistema tributário, descobre-se que a maior parte dos impostos taxa ricos e pobres da mesma forma, caso, por exemplo, do ICMS e IPTU, impostos que atingem toda população. A parcela dos 10% mais pobres da população têm 32,8% de sua renda destinados ao pagamento de impostos diretos e indiretos. A renda média dessa população era de R$ 49,8 por mês. Embora não paguem Imposto de Renda, são famílias que consomem bens com alta carga de impostos indiretos, como os da cesta básica. Já os 10% mais ricos do país gastam 22,7% de seus rendimentos com impostos. A renda destes era de R$ 2.178.
Conclui Márcio Pochmann: "As mansões pagam menos impostos que as favelas e essas ainda não têm serviços públicos como água, esgoto e coleta de lixo. Quem é pobre no Brasil está condenado a pagar mais imposto".
Já no caso do Imposto de Renda, na ditadura militar por incrível que pareça, o país tinha 13 faixas de renda, com alíquotas que chegavam a 55%, contra as apenas duas faixas de hoje, de 15,5% e 27,5%. Para efeitos de comparação, a Alemanha tem três alíquotas entre 22,9% e 53% do rendimento anual. A França tem alíquotas entre 5% e 55% (por isso, freqüentemente, vêem-se notícias de jogadores brasileiros de futebol ou sonegando impostos ou querendo fugir para países com impostos menores). Diz Márcio Pochmann: "O regime militar tinha política de imposto de renda mais voltada para a redução de iniqüidade. Chegamos a ter 13 faixas de tributação e os níveis mais baixos pagavam menos imposto que atualmente. O Imposto de Renda com apenas duas faixas retira o potencial redistributivo que poderia ter."
Indiscutivelmente, o maior problema brasileiro é a desigualdade econômica e social. Dela decorrem a fome, a miséria, o analfabetismo, o desemprego. O período neoliberal de Collor e FHC, assim como os governos neoliberais em todo mundo, agravou muitíssimo essa situação, da qual hoje sofrem-se as conseqüências em termos de criminalidade, violência, falta de perspectiva da juventude, uma sociedade corrompida em seus valores básicos e que ainda não encontrou uma alternativa global de futuro.
Esta é, claramente, uma questão política: que sociedade se quer construir, com que projeto de desenvolvimento e quais valores. O mercado, definitivamente, não resolve o problema da desigualdade, dizem e concordam hoje megainvestidores como George Soros e economistas como Delfim Netto. O sistema capitalista, dentro de sua lógica e estrutura, leva a que os ricos se tornem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres, seja no Brasil, nos EUA, na Europa ou na China.
No caso brasileiro, é urgente uma reforma tributária que enfrente as desigualdades. Márcio Pochmann sugere que a reforma tributária dê mais ênfase aos tributos diretos, como os que incidem sobre veículos (IPVA) e propriedades (IPTE e ITR). E inclua um Imposto sobre grandes Fortunas e outros impostos que consigam taxar a ‘riqueza imaterial’, aquela que circula no mercado. Neste sentido, "a CPMF é um imposto moderno, que conversa com o futuro e não precisa de fiscais". Estima-se que a riqueza acumulada no Brasil seja quatro vezes maior que o Produto Interno Bruto. Cobrando alíquota de apenas 1%, a arrecadação seria de R$ 100 bilhões.
Ao mesmo tempo, num ambiente onde o lucro e a acumulação de bens e riquezas são o valor máximo e não têm limites, é saudável reler os Atos dos Apóstolos e a pratica de vida da Igreja Primitiva : "A assembléia dos fiéis tinha um só coração e uma só alma. Ninguém considerava como seu o que possuía, sendo que tinham tudo em comum. Não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que tinham campos ou casas os vendiam e entregavam o dinheiro aos apóstolos, os quais o repartiam a cada um segundo suas necessidades" (Atos, 4, 32-35).
É o maior desafio contemporâneo, ao lado da questão ambiental. É preciso construir novos padrões econômicos, a partir de uma economia solidária, hoje já vivida e praticada por muitos grupos de trabalho e geração de renda. E propor um projeto de desenvolvimento que, além de respeitar o meio ambiente e natureza, tenha como objetivo principal a justiça e a inclusão social. Isso só se consegue fazendo a sociedade encarnar novos valores, como os da solidariedade, da partilha, do fazer coletivo, da eqüidade, da comunidade.
É fácil? É difícil? É impossível? Depende muito da consciência social e coletiva que se construir. É, sem dúvida, esforço de anos, décadas, que envolve sociedade e governos. Mas ou é feito, ou continuaremos a ver milhões na miséria e morrendo de fome como hoje, especialmente na África, ou veremos a catástrofes ambientais cada vez mais próximas. São escolhas e opções que fazemos todos a cada dia, quando participamos da comunidade e dos movimentos sociais, quando separamos o lixo, quando compramos alimentos, quando votamos. A América do Sul, felizmente, parece estar colocando o dedo na ferida e tomando um caminho que, mesmo sinuoso, com curvas, com pedras, não terá volta.
* Artigo escrito por Selvino Heck, Assessor Especial do Presidente Luis Inácio Lula da Silva e fundador e coordenador do Movimento Fé e Política