A soberania do medo

Quando se quer fazer da mentira a verdade

"A mentira sempre foi a arma dos opressores!
A gente vê que todos que são contra os nossos direitos
 usam essa mentira criada pelo governo de Roraima para justificar a injustificável permanência dos invasores"
( Dionito de Souza - CIR, 22/04/08)

Depois de duas semanas de intenso debate, leitura de dezenas e dezenas de artigos, matérias de imprensas, notas, manifestações nacionais e internacionais, seria uma omissão imperdoável continuar silenciando a respeito de uma questão de tamanha relevância; pois, envolve milhares de vidas, sonhos, sofrimento, mortes e lutas por direitos, justiça e dignidade.

No Acampamento Terra Livre, o tuxaua Jacy me chamou de lado e disse "Não temos mais em quem confiar!". Uma frase apenas. Trinta anos de lutas, com dezenas de vidas ceifadas, casas destruídas, prisões, torturas, seqüestros, sofrimento continuado pelas serras e lavrado. Tudo parecia desmoronar. Trinta anos exigindo o direito à terra, acreditando em prazos e promessas, até que finalmente a terra foi identifica, demarcada, homologada e os invasores com prazo para serem retirados. Uma vez mais todos os prazos foram sendo adiados, esticados, até que, finalmente, parecia que a sonhada paz sem invasões chegaria. Era véspera do Dia do Índio. O professor Dalmo Dallari, da USP, assim expressou seu indignado sentimento "O dia 19 de Abril de 2008, Dia do Índio, ficará assinalado como um dia em que a força venceu ostensivamente o direito, o dia em que ficou claro que a invasão de terras será tolerada e até mesmo protegida pelo Estado, se os invasores forem ricos e audaciosos e contarem com a conivência de autoridades públicas". (Gazeta Mercantil, 20/04/08)

Argumentos falaciosos

Fico perplexo quando vejo a grande imprensa veiculando montanhas de informações sabidamente infundadas, fantasiosas, eivadas de preconceitos, a serviço de interesses políticos e econômicos de uma minoria.

Não vou aqui ficar repetindo discursos que tentam ressuscitar a "soberania do medo", a pretexto de uma geopolítica em que o Brasil estaria possivelmente à mercê de maquiavélicas manobras para enfraquecer ou até perder a soberania sobre parte do território brasileiro. Perguntaria a esses senhores de plantão - quem foi que permitiu que uma madeireira na Amazônia, na década de 70 se apossasse de mais de 5 milhões de hectares? Quem foi que permitiu que uma entidade da terra do senhor Quartiero tivesse a propriedade sobre extensão maior do que a Raposa Serra do Sol, na região do rio Juruá?

Precisamos pelo menos ser honestos e coerentes, olhando para a história do nosso país e do continente e ver como ocorreram os processos de definição de limites, anexações de território, divisão e dizimação de povos. Certamente são os povos indígenas os que mais sofreram com esse processo continuado de invasão de mais de meio século. As terras indígenas dão muito mais segurança ao país, pois são duplamente protegidas, por serem de propriedade da União e, quando em faixa de fronteira, terem proteção constitucional especial pelas forças armadas. Como diz Jânio de Freitas "Uma reserva é menos fechada à entrada de militares do que as inúmeras propriedades privadas, inclusive estrangeiras, que percorrem o território brasileiro nas fronteiras. E não são vistas como portas abertas a invasões. Não são habitadas por indígenas. Há propriedades fundiárias, mesmo estrangeiras, que ocupam municípios. Não são áreas indígenas. Então, não há problema de descontinuidade territorial, de soberania, de tamanho da área - não há problema, ponto. Há 500 anos." (FSP, 17/04/08)

Mas, o que estariam pretendendo, para terem tão prontamente o apoio não só dos políticos de Roraima, mas do general de está à frente do Comando Militar da Amazônia? Fala-se em perigo para a soberania do país. "O ministro Genro discorda. Para ele, o temor da suposta ameaça à soberania está embasado em mitos. "Há um apoio a uma resistência que se coloca como movimento social, coisas são apresentadas como natural, mas trata-se de ações terroristas de resistência", considera, em referência à posição dos fazendeiros, já indenizados, de não querer deixar as terras. Segundo o ministro, o que acontece é "a chegada do Estado de Direito a um lugar dominado pelo Estado Oligárquico". O maior dos mitos, diz Genro, é o de que as terras indígenas são indisponíveis para a União. "Alimentou-se uma mentira. Do ponto de vista jurídico, é falsa a preocupação dos militares. Na verdade, o País perde o controle quando arrozeiros armados impedem a chegada da lei." (Em - Fantasmas convenientes - Felipe Milanês, 18/04/08)

Alguém já se deu ao trabalho de ver como as elites locais trataram os povos indígenas? Jamais reconheceram e vão reconhecer os direitos à diferença, os valores, a sabedoria e a dignidade desses que por séculos cuidaram dessas terras, tendo alguns até sido exterminados. Já imaginaram o absurdo de um governo do Estado decretar sete dias de luto quando foi homologada a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2005?

Como diria em recente matéria, Felipe da Silva Freitas, em "Povos Indígenas e Soberania Nacional: "Mais ao fundo do debate chefiado pelo Sr. Paulo Quartiero (líder dos arrozeiros) está a tentativa desesperada da elite nacional de conter a organização indígena e as suas conquistas, impedindo o reconhecimento de seus direitos e defendendo (de maneira perversa e por meio de estratégias fascista) os interesses do latifúndio improdutivo".

Estive, por várias vezes, partilhando momentos de profundo debate, celebração, sofrimento e esperança, com os povos indígenas de Roraima, desde a década de setenta. Senti de perto a covardia, as agressões e a dor por que eles têm passado. São dos mais dignos e conscientes cidadãos desse país, constantemente vilipendiados e submetidos à tirania do medo, por uma elite "sem argumentos", mas violenta e inescrupulosa.

Como nos diz Pablo Davalos, em - a heurística do medo - "O medo paraliza, destrói as solidariedades sociais... O medo despolitiza, fragmenta, corroe, desarma, imobiliza. O poder utiliza o monopólio da violência para administrar e controlar o medo social". Não nos deixemos amedrontar pela soberania do medo.


*Artigo escrito por Egon Heck, assessor do Conselho Indigenista Missionário - Cimi no Mato Grosso do Sul.