1 - O valor da pessoa
O ponto de partida da Doutrina Social da Igreja é a dignidade da pessoa humana. A base para essa afirmação está na tradição bíblica. A partir da filosofia pode-se dizer que o ser humano tem direito a desenvolver-se integralmente em todos os aspectos de sua vida pessoal e social e é dotado de liberdade e responsabilidade. Mas o cristão encontra a razão maior para afirmar sua dignidade na tradição bíblica.
O livro do Gênesis nos seus dois primeiros capítulos mostra-nos porque o ser humano é pes-soa livre e responsável. “Javé Deus modelou o homem com a argila do solo” (2, 7), somos pó, mas possuímos uma fonte de vida espiritual e racional, dada pelo próprio Deus, o espírito de vida: “Javé Deus... insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (2, 7) e ainda mais fomos feitos à sua imagem e semelhança: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança... Deus criou o homem à sua imagem, á imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (1, 26-27).
Por conseguinte o homem e a mulher são iguais porque da mesma matéria: “Depois, da coste-la que tirara do homem, Javé Deus modelou uma mulher” (2, 21-23); possuem o mesmo princípio vital e ambos são, em pé de igualdade, responsáveis pelo mundo e sua continuidade: “Sede fecundos multiplicai-vos” (1, 28), “Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher” (2, 24).
Ao longo da história, porém, esses textos foram lidos de forma distorcida e justificaram a do-minação do homem sobre a mulher. A mulher foi reduzida a uma coisa, sem a mesma digni-dade que o homem. Em suma, Gênesis 1 nos ensina, que o homem e a mulher são diferentes da natureza (animais e plantas) e de seus fenômenos (sol, lua, vento, mar, etc.) que são criatu-ras de Deus (“Deus criou... Deus fez”) e não deuses, mas ao mesmo tempo nos mostra o lugar especial do homem e da mulher na criação. Evidencia sua dignidade e igualdade, pois foram criados à “imagem e semelhança” de seu criador, Deus.
Criado à imagem e semelhança de Deus, o ser humano é livre e responsável. É até capaz de se rebelar contra seu criador pelo pecado (Gn 3), fazendo-se escravo de suas paixões, escravi-zando e explorando seus semelhantes e a natureza para satisfazê-las e usando de modo irres-ponsável o dom maior que recebeu, a liberdade.
Criado à imagem e semelhança de Deus Pai, o ser humano vale tanto que é resgatado pela morte e ressurreição de Jesus Cristo, o próprio Filho de Deus encarnado e, quando o Espírito Santo habita nele pela fé, ele se torna templo da Trindade. É este o grande legado da tradição bíblica cristã para a humanidade: na referência ao Deus Trino – Pai, Filho e Espírito Santo –, o ser humano encontra o fundamento de sua dignidade.
Assim, a civilização ocidental, ao longo da sua história, claramente sob o influxo da tradição cristã, elaborou e proclamou no âmbito das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direi-tos do Homem (10/12/1948), que até hoje serve de parâmetro para uma convivência mais humana na terra.
2 - O primado da pessoa e da família
A pessoa é o indivíduo de natureza racional, portador de potencialidades que se desen-volvem através da vida, no seio da família e da comunidade. Nessa definição, percebe-se que a pessoa acontece no feixe de relações familiares e sociais. Para a existência do ser como pessoa são necessárias as relações familiares. É a partir delas que a novo ser humano vai se definindo, descobrindo-se diferente dos outros com quem esta-belece relações de eu-tu, até chegar à afirmação do nós, na sociedade - comunidade.
A família é então imprescindível para o desenvolvimento da pessoa, e a Doutrina Social da Igreja ensina que ela deverá monogâmica e estável, a partir do matrimônio uno e indissolúvel, elevado à condição de sacramento para o cristão. A família não é apenas uma contingência para a sobrevivência do grupo, mas faz parte do plano original de Deus ao criar homem e mu-lher. Mas a pessoa e a família, da qual ela faz parte, encontram-se inseridas numa estrutura maior e necessária para sua existência que é o Estado, “organização do poder político da co-munidade nacional”. O Estado que buscamos é o democrático moderno que deverá respeitar a precedência que diante dele tem a pessoa e a família.
Por causa do desrespeito a esse princípio, surgiram os maiores conflitos na história. Foram vários os Estados nacionais que se colocaram acima das pessoas, considerando-as apenas ins-trumentos para alcançarem objetivos de política econômica, militar ou hegemônica. Aconte-ceram, assim, experiências de absolutismo, nazismo, fascismo, comunismo e outras, nas quais foram negados às pessoas e às famílias seus direitos fundamentais. Como conseqüência da experiência trágica do nazi-fascismo, foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos Hu-manos (1948).
Diante de todas essas violações, a Doutrina Social da Igreja tem também seus princípios e afirma a dignidade inviolável e fundamental da pessoa e o lugar insubstituível da família na sociedade humana, embora consciente de que, no passado, a própria Igreja Católica os tenha negado. Já Leão XIII afirmava na Rerum Novarum que os direitos da pessoa são anteriores ao Estado, no sentido de que ele não os outorga. Eles derivam de sua própria dignidade natural. João XXIII, na Mater et Magistra, deixou claro que é dever do Estado garantir os direitos da pessoa humana.
Hoje, pela união íntima entre política e economia, os princípios econômicos neoliberais ado-tados pelos Estados fazem que eles prescindam do valor da pessoa e da família, colocando em primeiro lugar o desenvolvimento econômico dos grupos hegemônicos e dominantes, ou os interesses do mercado. O mercado torna-se, em várias circunstâncias, o novo senhor, não le-vando em conta os elementos básicos e constitutivos da sociedade, a pessoa e a família.
Também diante dessa nova situação a Doutrina Social da Igreja tem sua posição, reafirmando o primado da pessoa sobre toda e qualquer estrutura social e econômica, pois o Estado existe como instrumento para se alcançar o bem comum.
3 - A autoridade e a ordem social
A autoridade é necessária para que haja ordem social justa. Ela, porém, não pode estar acima dos princípios de ética e da busca do bem comum. A ordem social, às vezes, é entendida como a fixidez semelhante à ordem natural do cosmos. Isso é um engano, pois a lei básica do cosmos não é fixa, mas evolui e adapta-se às novas si-tuações. Quem a entende de modo estático favorece o status quo e recusa qualquer tipo de mudança, sugerindo paciência e resignação e esquecendo que a ordem social é resultado de um esforço sempre renovado das pessoas de se aproximar de um ideal de convivência plena-mente humana. A ordem social não preexiste à pessoa humana e os que pensam o contrário podem favorecer a iniqüidade social e provocar uma maior injustiça sob a aparente ordem social.
Então, como se estabelecer uma ordem social justa? O caminho natural será uma sociedade democraticamente organizada, guiada por uma autoridade legitimamente constituída que bus-que o bem comum da comunidade que lhe é confiada. Desse modo, uma ordem social injusta que impeça ou contrarie o princípio do bem comum não se impõe moralmente, pois lhe falta cabedal para tanto.
A autoridade é necessária para organizar, liderar, conduzir a comunidade rumo ao bem co-mum, segundo uma ordenação jurídica moralmente fundada na natureza livre e social da pessoa humana. Daí a Doutrina Social da Igreja considerar Deus o fundamento último de toda autoridade. Pois, quando as pessoas se reúnem em sociedade e atribuem autoridade a alguém, não renunciam à sua dignidade fundamental, segundo a qual todas são iguais. Desse modo ninguém dispõe de um poder decisivo sobre os destinos do outro, só Deus o tem. O poder da autoridade será sempre delegado por Deus, no caso das democracias, mediante as mediações sociais para um processo legítimo de designação, como as eleições ou a nomeação por uma autoridade legitimamente constituída. Qualquer outro meio será usurpação de poder.
Além dessa autoridade jurídica, existe também a autoridade moral de quem, por méritos e qualidades pessoais, exerce a liderança sobre um grupo, que a aceita espontaneamente. O ideal, pois, seria unir a autoridade moral com a jurídica em uma só pessoa. Teríamos, então, uma autoridade indiscutível.
A Doutrina Social da Igreja reconhece a autoridade como vinda de Deus e, como o apóstolo Paulo, pede que o cristão lhe obedeça, mas ao mesmo tempo reconhece o direito da resistência a qualquer autoridade injusta que contrarie os princípios da busca do bem comum ou queira levar os cidadãos a contrariarem princípios irrenunciáveis da ética e moral cristãs. É o obede-cer antes a Deus que aos homens do livro dos Atos dos Apóstolos (5, 29).
O que fazer diante de autoridades ilegais ou injustas? O ideal seria que, em qualquer situação, os meios para se restabelecer uma ordem social justa e uma autoridade legítima e legal fossem os pacíficos. Sabemos, porém, que vários povos tiveram que passar para a resistência armada, para restabelecer a paz e a justiça em seus territórios. De qualquer maneira, as armas deveriam ser o último dos meios.
4 - O primado do bem comum
O bem comum é um dos princípios básicos da Doutrina Social da Igreja . Um dos grandes desafios, porém, é a tensão entre esse princípio e o interesse particular. O princípio do bem comum em vista de uma ordem social seria, segundo a Encíclica Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II: “O conjunto daquelas condições de vida social que permitam aos grupos e a cada um de seus membros atingirem de maneira completa e sem maiores dificuldades a própria perfeição” (26). O bem comum, por conseguinte, há de ser buscado em primeiro lugar. E diz respeito não só aos grupos e às nações individualmente, mas a toda a comunidade mundial.
O que se vê, na realidade, são instituições, nações e governos procurando, antes de tudo, seus interesses e o bem do seu grupo. As nações colocam acima de qualquer interesse os ganhos nacionais, daí os protecionismos no comércio, o fechamento de fronteiras para estrangeiros, os controles rigidíssimos para os migrantes e mesmo turistas, em nome de segurança nacional. Ela é colocada acima de tudo, mesmo dos mais comezinhos direitos da pessoa humana de não sofrer constrangimentos públicos. O Vaticano II, porém, ensinava diferentemente: “Cada grupo deve levar em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos, e, mais ainda, o bem comum de toda a família humana” (GS 26).
O mesmo fazem os grupos de interesse locais e nacionais. É notória a formação de lobbies, grupos de pressão de uma certa classe social que na votação das leis defendem seus interesses não importando que a nação ou o estado sejam prejudicados. Mas também nas associações de bairro, nos sindicatos, nos movimentos políticos e sociais muitas vezes perde-se de vista o interesse maior, o bem comum. Muitas vezes, há o conflito entre o bem particular (de uma pessoa ou grupo) e o bem comum, mas, nesse caso, sempre deveria prevalecer o segundo. Assim, um número maior de pessoas seria favorecido e teria suas necessidades atendidas, possibilitando condições de vida melhor para mais pessoas.
Segundo a Doutrina Social da Igreja, o Estado é o responsável pelo bem comum e essa é sua própria razão de ser (Rerum Novarum 26). Daí a necessidade dele ter leis que ponham o bem comum acima e na frente de tudo, pois esse princípio diz respeito à ordem material, intelectual, moral e institucional da nação. A administração pública deveria, por conseguinte, gerir o bem comum e mobilizar todos os cidadãos para sua realização e conservação.
A doutrina do bem comum nasceu no âmbito da reflexão da filosofia escolástica, e, sobretudo, graças ao gênio de Tomás de Aquino. Definiu-se o que seja “justiça comutativa” (o direito de uma pessoa em relação a outra pessoa) e “justiça distributiva” (o direito da pessoa em relação ao grupo) e, acima de ambas, colocou-se a “justiça geral” que tem como fim o bem comum. Segundo são Tomás, ela “é a norma que regula a sociedade humana e a vida em comum”. Ele a chama também de “justiça legal”, porque é por intermédio da lei que normalmente o bem comum é realizado na sociedade.
5 - Um mínimo de bens materiais
Contra a carência absoluta dos bens necessários ao ser humano para viver sua dignidade fun-damental de criatura de Deus, a Doutrina Social da Igreja apresenta como exigência a supera-ção da pobreza, da miséria que brutaliza o ser humano.
Infelizmente, essa é a condição de um terço da humanidade: faltam-lhe as condições para ter casa, comida, educação e a perspectiva de um futuro melhor. Faltam para muitas pessoas os bens necessários. Os párias da humanidade aumentam cada dia mais. O desenvolvimento das nações não foi capaz de provê-los do necessário, porque houve uma concentração injusta de poder e riqueza. Não é sem razão que se diz que, para além do Terceiro Mundo, já existe um Quarto Mundo. Há quem já fale dos porões da humanidade: massas sobrantes de seres huma-nos, relegados ao desespero e à não-vida.
É evidente que a causa da miséria está, às mais das vezes, na estrutura social pecaminosa e injusta que não dá igual oportunidade a todos, mas também pode estar na incapacidade mental ou mesmo física do indivíduo de se prover do necessário. No segundo caso, o Estado deveria dar as condições para que os incapacitados socialmente de se manterem tivessem o necessário para si e suas famílias e também meios de se promoverem. Essa é a doutrina da Rerum Nova-rum 27. Nela, a doutrina do bem comum encontra uma aplicação prática.
O papa Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio, chamou a atenção para a realidade da pobreza em níveis mundiais. Por isso a constituição Gaudium et Spes (Concílio Vaticano II) denuncia com vigor a insensatez das nações ricas, surdas às necessidades urgentes do Terceiro Mundo. Pois, hoje, não só pessoas vivem na miséria, são populações inteiras, povos e nações que foram excluídos do banquete da vida. Não contam para a economia mundial e são descar-táveis.
Esse é o campo da justiça social, no qual todos nós somos responsáveis pela realização de estruturas sociais que permitam a todos atingirem níveis compatíveis com sua dignidade. Es-tão em jogo direitos naturais imprescritíveis. Se as estruturas sociais e políticas tivessem em vista o bem comum, criar-se-iam as leis e o Estado daria oportunidades para que todos tives-sem o mínimo necessário para viver sua dignidade de pessoa.
Para o cristão, a urgência é ainda maior. Cristo veio nos trazer a perspectiva da vida em abun-dância (João 20, 20). Essa vida plena inclui todas as dimensões do ser humano como pessoa unitária, sendo que a material é tão importante quanto a espiritual. Por conseguinte, ele tam-bém deve ter a possibilidade efetiva de não apenas sobreviver, mas viver com dignidade.
Isso em nada contradiz a pobreza como opção por causa do Reino, mesmo porque pobreza e miséria não são a mesma coisa. Renunciar aos bens para poder melhor servir e partilhar com os pobres é bem-aventurança; não ter o mínimo necessário é situação de pecado que clama aos céus.
6 - Solidariedade
Um povo ou nação não pode simplesmente pensar em se desenvolver e desconsiderar os outros. É injusto também que um povo impeça que outro se desenvolva.
Desenvolvimento pode ser definido como “um processo de mudança pelo qual as necessidades humanas de uma sociedade são satisfeitas... decorrente da introdução de inovações tecnológicas” (F.Bastos Ávila– PEDSI, p.151). Em outras palavras, trata-se de colocar as novas tecnologias ao serviço do ser humano, e aí está o problema. Se a pessoa não for beneficiada de forma total e integral, se não for contemplada suas dimensões materiais e espirituais, o desenvolvimento não será autêntico. A autenticidade exige também que o desenvolvimento não atinja só uma parte da comunidade, alguns grupos privilegiados, mas a todos os membros da comunidade nacional e internacional.
Na década de 60, falou-se muito de desenvolvimento e progresso. A própria Encíclica de Paulo VI sobre o Progresso dos Povos (Populorum progressio) participou desse clima de euforia em que se pensava que pelo progresso seria possível chegar a uma melhor partilha dos bens entre os vários povos e no interior dos países. Talvez não se levasse em consideração, ou não se desse tanta importância, aos limites intrínsecos do modelo de desenvolvimento que se buscava. O modelo era fundamentalmente capitalista e trazia no seu bojo a concentração de renda e a desconsideração pelos mais fracos, o descaso pelos valores espirituais das pessoas, e a solidariedade era entendida mais como esmola do que como partilha.
O fato é que hoje são muitos os países e sociedades que não conseguem atender às necessidades básicas de seus membros. A esses países comumente se dá o nome de “em desenvolvimento”, mas os anos se passaram e pouco se conseguiu; a pessoa, como um todo, não foi atingida. Eles continuam eternamente “em desenvolvimento”. Muitas sociedades até hoje ainda não tiveram sequer a possibilidade de iniciar esse processo. Não tiveram a oportunidade e são excluídas ou mesmo descartadas do processo de desenvolvimento. Mesmo as sociedades desenvolvidas estão em continua busca, pois as novas necessidades pedem novas respostas, são mais exigentes.
O desenvolvimento autêntico deve ser econômico e social (Mater et Magistra 78) escrevia João XXIII, e Paulo VI falava de “desenvolvimento de todos os homens e do homem todo”. Por conseguinte o desenvolvimento, no seu sentido integral e solidário, “é o novo nome da paz” (Populorum Progressio 87). Como constata João Paulo II, o progresso não reduziu, mas ampliou ainda mais o hiato entre mundo desenvolvido e subdesenvolvido (Sollicitudo Rei Socialis 12).
Também nesse tema deve prevalecer o bem comum e a justiça distributiva. Não é justo que alguns tenham tantas oportunidades e outros, nenhuma. Mais injusto ainda é quando alguns povos em sua ganância de bens e de bem estar impedem que outros se desenvolvam, ou só pensam em si próprios no uso das fontes de energia, das matérias primas do planeta e dos elementos fundamentais à vida, como a água, não dando importância aos que jazem à porta “comendo das migalhas que caem da mesa, rodeados pelos cães” (Lc 16,21).
O desenvolvimento integral é possível e produzirá paz, mas para isso é necessário também o convencimento de que sem solidariedade o desenvolvimento, o progresso será uma farsa.
7 - Destinação universal dos bens
Foram sobretudo os padres da Igreja, escritores do primeiro milênio, que desenvolveram esta doutrina e nos transmitiram esta convicção: a terra, os bens do universo são de todos e para todos.
Santo Ambrósio afirma: “A terra foi feita para todos em comum, ricos e pobres”. São Basílio, referindo-se ao que temos em nossas casas, diz: “O pão que guardas em tua dispensa pertence ao faminto, como pertence ao nu o agasalho que escondes em teus armários. O sapato que apodrece em tuas gavetas pertence ao descalço, ao miserável pertence a prata que ocultas”. E são João Crisóstomo pergunta: “A terra, com tudo o que ela encerra, não é de Deus?”. Ele continua: “Se então as nossas riquezas pertencem ao Senhor do mundo, elas são dos homens que são seus servidores como nós. Porque tudo pertence ao Senhor, é para o uso de todos”.
Os Padres da Igreja, bem mais próximos do que nós das fontes evangélicas e mais sensíveis aos clamores dos grandes profetas bíblicos, deixaram-nos um precioso legado sobre o sentido da propriedade e a destinação universal dos bens. O ensinamento deles pode se resumir no seguinte: a intenção primeira de Deus era a destinação universal de tudo a todos; a apropriação pessoal foi uma mudança na lei primitiva. Deus destinou os bens da terra à fruição de todos os seus filhos, mas o usufruto pacífico tornou-se impossível pelo pecado, que desperta no homem o desejo de possuir só para si ou para os seus. Esse egoísmo, porém, não está só nas pessoas, mas também nos grupos ou nações que querem ter o uso exclusivo de determinadas riquezas ou bens. Hoje em dia, isso se caracteriza, sobretudo, pelo uso e monopólio das tecnologias de ponta.
O Papa Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio (23) citou santo Ambrósio (“Não dás de tua fortuna, ao seres generoso para com o pobre, tu dás daquilo que lhe pertence. Porque aquilo que te atribuis a ti foi dado em comum para o uso de todos.”) para fundamentar seu ensinamento sobre o destino universal dos bens e a propriedade, bem como sobre “a atitude daqueles que possuem em relação aos que estão em necessidade”.
Assim, os bens existentes sobre a terra adquirem sentido e razão de ser, se forem destinados ao ser humano e servirem para o bem das pessoas e sua comunidade. É o ser humano que dá sentido aos bens. Eles existem para que cada pessoa possa realizar plenamente seu projeto de existência, suas necessidades, seus desejos, suas aspirações. Se os bens forem usados somente em favor de alguns e por alguns, o princípio de seu destino universal terá sido violado, e eles perdem sua finalidade. Pior ainda se usados para beneficiar financeiramente determinadas elites.
Continua, portanto, valida a advertência de santo Ambrósio: “O Senhor Deus quis que essa terra fosse propriedade comum de todos os homens e a todos oferecesse seus produtos; mas a avareza repartiu os direitos de posse”. Vê-se que a problemática da destinação universal dos bens está ligada à questão da propriedade e essa condicionada pelo destino universal dos bens, como querido por Deus.
8 - A legitimidade da propriedade privada
O direito de propriedade pertence à lei natural, é uma garantia para a liberdade da pessoa, serve de alavanca ao desenvolvimento da sociedade e estimula as pessoas a usar melhor seus bens e a valorizar suas possibilidades criativas.
Porém o direito à propriedade particular não é absoluto. Desde o tempo dos Padres da Igreja (séculos I-X), insiste-se no fato que os bens da criação foram dados para todos e não para o privilégio de alguns, daí a afirmação que João Paulo II: “Sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social” (Oaxaca - México). Assim, o direito pessoal torna-se uma responsabilidade social. Ninguém pode se apropriar de algo e excluir outras pessoas dos benefícios que esse bem possa produzir. Trata-se tanto dos bens móveis como imóveis; das tecnologias como das fontes de produção. Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio já dissera que “a propriedade privada não constitui um direito incondicional e absoluto” (23) e reprovava o regime que se apóia sobre a unilateralidade da posse dos bens de produção “como um direito absoluto sem obrigações sociais correspondentes” (26).
Quanto ao Estado, ele tem o dever de reconhecer a propriedade, pois o direito de propriedade lhe é anterior, mas também tem o de regular o direito de propriedade por leis que contemplem o bem comum. Isso significa que justiça legal deve organizar a sociedade, reconhecendo a cada um os seus direitos. O Estado também tem o direito de regulá-la pela socialização dos bens, se isso for um imperativo necessário para o bem maior da comunidade, pois o princípio fundamental da destinação universal das coisas aos homens prevalece sobre o direito positivo.
A comunidade, além disso, deve prestar atenção ao fato que o direito de propriedade dos bens de produção e da terra pode facilmente se tornar um meio de espoliar os mais fracos, tanto países e comunidades como pessoas. Em relação aos fracos e necessitados, são Tomás de Aquino chegou a afirmar que o pobre “no caso de uma necessidade evidente e urgente” poderia se apropriar dos bens necessários para sua sobrevivência. Nesse caso, o direito de propriedade entraria em conflito com a natural e universal destinação dos bens, cedendo a precedência a direitos mais fundamentais e invioláveis.
Em nossos dias, o tema atual é o da propriedade das tecnologias de ponta, das patentes. Os países e as corporações donas dessas tecnologias não as repassam aos países subdesenvolvidos ou, quando o fazem, é uma tecnologia já superada ou a um alto custo. Até que ponto esse direito pode ser considerado de forma tão absoluta, sobretudo o domínio sobre a tecnologia farmacêutica? É justo deixar morrer tanta gente de enfermidades curáveis, porque o país não tem recursos para pagar por tais patentes? A resposta a essa problemática depende de uma legislação internacional fundada na solidariedade.
O documento de Puebla resume bem a questão: o direito de propriedade tem seus limites (492), não é um valor absoluto (542), pode ser fonte de abusos (1263) e todos têm o direito de acesso á propriedade (1271).
9 - A dignidade do trabalho
A tradição judeu-cristã interpretada erroneamente fez com que se considerasse o trabalho como um castigo, enquanto a Bíblia diz apenas que, após o pecado, ele seria vivido com o suor do rosto.
O trabalho, enquanto participação da pessoa humana na obra da criação, foi e será sempre bom e bonito; as circunstâncias em que ele acontece é que estão marcadas pelo pecado. Essa é a dignidade fundamental do trabalho, pois a Bíblia não hesita em dizer que Deus trabalhou, como trabalharam Jesus e seu pai José. E estes últimos realizaram trabalhos braçais, na antiguidade, considerados de escravos e não dignos do ser humano livre. Além disso, o trabalho possibilita à pessoa o desenvolvimento de todas as suas capacidades humanas e dá-lhe condições de obter o seu sustento para uma vida digna. A escritura ainda diz que o trabalho permite à pessoa praticar a caridade. Portanto, mediante o trabalho, a pessoa não somente transforma a natureza, mas também realiza a si própria, faz-se criadora (LE – Laborem exercens, 9).
Trabalho é, então, toda ação pela qual o ser humano transforma a natureza, colocando-a a seu serviço. É uma atividade cultural, pois se trata de uma interação da pessoa com seu meio ambiente, criando cultura e transformando a natureza. Por conseguinte qualquer tipo de trabalho humano tem dignidade, pois é a pessoa que lhe dá dignidade e, não, o trabalho a ela, diz João Paulo II (LE 6). Nossa sociedade, porém, costuma fazer ao contrário: considera que o trabalho intelectual ou tecnológico dá dignidade à pessoa e perde de vista o fato que a pessoa que faz os trabalhos mais simples é quem lhes dá dignidade.
Daí o trabalho ser um direito e um dever. Direito, pois o Estado deveria criar as condições para que todos os cidadãos tivessem seu trabalho e vivessem de forma autônoma, garantindo a sua subsistência e a da sua família. Dever, porque o ser humano não pode viver sem trabalhar, como um parasita da sociedade (2Ts 3, 10).
Unida à dignidade do trabalho, está a questão da remuneração, do salário que não basta ser mínimo, mas deve ser justo e dar condições ao ser humano de viver com os seus em dignidade. E, no ambiente da família, a mulher deveria ter as condições de trabalhar para sua realização pessoal, para ajudar a manter os seus e a si, mas sempre, se for mãe, com a possibilidade de também cuidar dos filhos. Além disso, sua remuneração deveria ser igual à do homem, no caso de realizar o mesmo trabalho que ele.
A partir de Leão XIII, a Igreja começou explicitamente a preocupar-se com a questão do trabalho, vendo-o como “a chave da questão social”. Desde então, todas as Encíclicas sociais trataram do tema, de modo especial a Laborem exercens (Sobre o trabalho humano), de João Paulo II. Além do que já foi citado, ela lembra que: O trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho; a finalidade do trabalho é o próprio homem (LE 6); no sistema capitalista, o trabalho tornou-se uma mercadoria (LE 7); a fadiga une a pessoa a Jesus Cristo (LE 22).
10 - A luta de classes
A luta do cristão de forma alguma se trata de destruir o oponente ou o que pensa diferente. Será uma luta fundada na solidariedade dos trabalhadores em busca do bem comum.
Só o fato de ler esse título já causa prurido em muita gente. Historicamente, foi Karl Marx que viu nesse princípio a força propulsora da história. A luta de classes seria conseqüência inevitável da evolução do capitalismo. Esse pelo seu próprio funcionamento, por uma de suas características inerentes, conduziria a uma concentração cada vez maior de riquezas nas mãos de alguns, à miséria dos operários e à proletarizacão da classe média. Num determinado momento, a classe operária, consciente de que o sistema capitalista era a causa de sua miséria, unir-se-ia em todo o mundo para a luta contra o capitalismo. Vencendo a luta, ela imporia a ditadura do proletariado, como transição necessária, cuja missão seria estabelecer uma sociedade comunista e igualitária.
Várias experiências históricas aconteceram nesse sentido na União Soviética, na República da China, no Vietnam, em Cuba; apenas algumas subsistem, ainda hoje, capengando e aceitando, para sobreviver, alguns princípios do próprio capitalismo que repudiavam. Como várias delas foram impostas por forças internas ou externas, com o decorrer do tempo perderam o apoio do povo. Também porque não conseguiram realizar o que prometeram e entraram em crise, quando não desapareceram completamente, como por exemplo, no Leste europeu. Porém é preciso reconhecer que nessas experiências houve aspectos positivos, sobretudo na educação e alfabetização das massas bem como no setor saúde.
No mundo ocidental e capitalista, a classe operária conseguiu muitas de suas conquistas através do sindicalismo, às vezes radical, mas de resultados e sem chegar ao paroxismo da luta de classes. A boa organização sindical alcançou resultados significativos nas nações democráticas desenvolvidas. O mesmo não ocorreu no terceiro mundo.
À luta de classe, a Doutrina Social da Igreja contrapõe a solidariedade e o sindicalismo como respostas efetivas e produtivas para resolver os problemas da miséria dos pobres e do proletariado urbano e rural. A luta de classes, como propugnava Marx, aparece para os cristãos, hoje, como uma proposta anacrônica, mas os problemas que pareciam exigi-la persistem e não se pode ignorá-los. O número dos miseráveis no mundo aumenta, o capitalismo se travestiu de neo-liberalismo, mas continua a gerar fome e miséria. O fosso entre países ricos e pobres tende a aumentar. A exploração não é só de uma classe por outra, mas de multidões de famintos e de excluídos do terceiro e quarto mundos que são descartáveis no âmbito de uma economia globalizada, apresentada como a salvação.
É interessante observar, que o Papa João Paulo II, em sua encíclica sobre o Laborem exercens (Trabalho Humano) usa o termo luta, mas com significado positivo. A luta deve fazer parte dos programas sindicais e é um seu instrumento de conquistas democráticas e sociais. Os sindicatos, diz ele, “são um expoente da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens ao trabalho... esta luta deve ser compreendida como um empenho normal das pessoas em prol do justo bem... que é a justiça social” (LE 20).
11 - O trabalho e o capital
Os dois têm uma dependência mútua, precisam um do outro e, se harmonizados, podem alcançar o objetivo do bem comum. Porém, não se pode perder de vista a primazia do trabalho sobre o capital.
Entendamos bem os termos. Capital é “todo bem econômico suscetível de ser aplicado à produção” ou “toda riqueza que é empregada para produzir renda” (Bastos Ávila p.62). Trabalho é a ação, a atividade física ou intelectual realizada pela pessoa humana dentro do sistema econômico e que tem por finalidade transformar a natureza e produzir bens ou serviços. Das definições, já parece evidente, porque o trabalho tem a primazia sobre o capital. Como ele é realizado por uma pessoa, possuidora de dignidade fundamental, esta tem prioridade em qualquer escala de valores.
A própria existência do capital é condicionada pelos objetivos que ele deve ter: promover riqueza e desenvolvimento, que não são absolutos, pois deveriam sempre levar em conta o bem comum da humanidade. As encíclicas sociais dos papas trataram com freqüência dessa relação trabalho e capital. A Rerum Novarum põe a base de qualquer reflexão: “Não pode subsistir o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital” (RN 15).
O problema é que o capital assumiu a predominância na vida da sociedade e passou a ser sempre mais instrumento de opressão. Já em 1931, o papa Pio XI dizia: “O que nos fere a vista é o fato de que, em nosso tempo, não há só uma concentração de riqueza, mas também acumulação de um enorme poder econômico despótico nas mãos de poucos” (Quadragésimo anno 104). E o que dizer neste início de terceiro milênio? A concentração de capital continuou e aumentou de tal modo, que ele se tornou senhor absoluto, para muitos uma nova divindade, que tudo pode e da qual tudo se deve esperar. Tornou-se, juntamente com o mercado e o sistema econômico capitalista, quimera capaz de solucionar todos os problemas.
O absolutismo do capital levou à exploração da pessoa humana. Seu trabalho tornou-se simples mercadoria, condicionada pelas leis nem sempre justas do mercado. A pessoa que dá sentido ao trabalho foi coisificada e tornou-se refém do capital. O desemprego, fruto das novas tecnologias e do crescimento populacional, faz que o trabalho seja desvalorizado, devido a abundância de mão de obra barata.
O trabalho perdeu a corrida para o capital. Ele deixou de ser fruto do patrimônio histórico do fazer humano e de ter a prioridade em relação ao capital. Como diz João Paulo II , “aos empresários (se impõe) como dever de justiça considerar o bem dos operários antes do aumento dos próprios lucros” (Laborem exercens 14b). Portanto, o lucro só será legítimo na medida em que serve ao trabalho.
Além disso, nos dias atuais, o capital não tem pátria. Desloca-se para lugares onde renda mais ou para países que tenham leis brandas e tolerantes para o controle dos lucros, na chamada fuga de capitais. Daí a necessidade de se criarem leis internacionais de controle sobre os grandes capitais que são muito maiores do que a renda de alguns países do terceiro mundo e não respeitam costumes e tradições locais, quando não são fontes de corrupção e chegam a governar indiretamente países e nações. A busca desenfreada do lucro desestabilizou as relações trabalho – capital. O bem comum foi perdido de vista, a pessoa humana mais uma vez foi menosprezada e aviltada.
12 - Associações profissionais e sindicatos
Há mais de um século, a Igreja reconhece o direito e o dever do trabalhador de se organizar em associações e sindicatos.
No final do século XIX, um tema candente era a constituição das associações de classe, onde se incluem os sindicatos. Os Estados se opunham e a Igreja não tinha uma posição definida. Por seu lado, os socialistas e comunistas fizeram dessa causa uma de suas bandeiras. O Estado reagia, sobretudo diante das greves, com a força bruta, a intervenção da polícia e, algumas vezes, do exército, pois esses movimentos sociais eram considerados como subversivos da ordem estabelecida.
Convém considerar que é um impulso natural da pessoa humana se organizar em grupos para interagir com a natureza e sobreviver, também para se defender de inimigos ou defender seus interesses comuns. O fundamento de tudo isso é o instinto social do homem. Dessas associações, ele participa pelo que é – ser social – ou pelo que tem ou produz – associação de classe e sindicatos.
A encíclica Mater et Magistra viu o crescimento do fenômeno associativo como positivo (MM 64) e afirmou que pelo principio da subsidiariedade o Estado não tem o direito de impedir a criação e o funcionamento de tais associações, à medida que elas cooperam para o bem comum (MM 57-60). O Vaticano II, através da encíclica Gaudium et Spes, “exorta todos os seus filhos e a todos os homens a superar ... todas as dissensões entre as nações e raças, a fim de consolidar internamente as justas associações humanas” (GS 42e).
Nesse contexto, insere-se a questão dos sindicatos. A partir de Leão XIII, com a encíclica Rerum Novarum, a Doutrina Social da Igreja defende o direito dos trabalhadores de se organizarem para defender seus legítimos interesses e contribuir assim para superar a questão social (RN 40). Desse modo, os movimentos que tinham surgido entre os trabalhadores, especialmente na França e na Inglaterra, e que pouco a pouco se espalham pelo mundo, recebem a chancela da Igreja.
Pio XI apoiou, sobretudo, os sindicatos cristãos. Pio XII, escrevendo ao episcopado alemão, incentivou os católicos a se inscreverem em seus sindicatos. Na época de Leão XIII, houve a tentativa de se constituírem sindicatos comuns a patrões e operários que, de uma certa forma, diminuiriam o poder de um sindicato de classe. Eram os Círculos Operários que floresceram em alguns lugares, mas que perderam força ao longo dos conflitos entre capital e trabalho.
Paulo VI, recentemente e num contexto bem mais complexo, constatou que as sociedades e os Estados aceitam o princípio da existência dos grupos organizados de trabalhadores para defenderem seus direitos, mas nem sempre estão abertos ao exercício desse direito. Apesar de admitir o papel importante dessas associações, é evidente também, que se reconhecem as dificuldades e os problemas, quando elas procuram impor à sociedade, pela força, uma posição que é só política, recorrendo de forma irresponsável ao direito inalienável da greve.
João Paulo II disse que o sindicato é “um expoente da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens ao trabalho, segundo as suas diversas profissões... mas não é uma luta contra os outros... e não se pode visar à luta pela luta, ou então para eliminar o antagonista. O trabalho tem como sua característica, antes de tudo, unir os homens entre si; e nisto consiste a sua força social” (Laborem Exercens 20).
13 - A intervenção do Estado na questão social
O Estado tem o dever de intervir nas questões que dizem respeito ao cidadão. Entre elas, destacam-se as questões sociais, porque condicionam a vida do cidadão.
Há certa tendência de cunho neoliberal que procura diminuir o tamanho do Estado, sobretudo em seu poder de intervenção, deixando que as questões se resolvam pelo simples jogo das forças sociais. Supõem-se, nesse caso, que uma força não possa dominar ou condicionar a outra, que as forças sociais sejam iguais e que se possa chegar a soluções justas e equânimes pela simples inércia das relações sociais. São os que se referem a esse dever do Estado como poder intervencionista; no fundo o status quo os favorece.
Essa perspectiva esquece que o Estado pode tudo aquilo que seja necessário para promover o bem comum. Compreendido o que seja bem comum, o Estado não exorbitará caindo em alguma forma de totalitarismo, pois, no fundo, ele se subordina à pessoa; sua razão de ser é promover o bem da pessoa, um instrumento do bem comum a ser alcançado. É evidente que, na consecução dos fins, a pessoa subordina-se às justas exigências da organização do Estado de cuja organização ela mesma participou como cidadã.
Pio XI, retomando um tema da Rerum novarum, afirmava claramente o dever do Estado de intervir na questão social (Quadragesimus annus 25ss). João XXIII via como dever do Estado, sobretudo, a defesa dos mais desprotegidos (Mater et magistra 23,56,158).
O princípio que norteia esse dever do Estado é o da subsidiariedade. Ela regula as relações do Estado com as pessoas, com os grupos intermediários e com comunidades. Devido o princípio da anterioridade das pessoas e das comunidades sobre o Estado, esse deve estar a serviço dos componentes do corpo social. Assim o Estado deve favorecer em tudo seus cidadãos para conseguirem os fins escolhidos e criar as condições para isso: orientando-os, suprindo suas deficiências, mas nunca os substituindo ou absorvendo (Quadragesimus annus 80).
Desse modo o Estado deve intervir na questão do salário justo (Rerum novarum 36), do tempo máximo de trabalho do operário, da previdência social pública, da educação, da saúde, dos transportes e em todas as outras questões que incidam sobre a consecução do bem comum. Além do mais, o Estado deve dar todas as condições para que a família assuma “de modo adequado todas as suas responsabilidades” (Familiaris consortio 45); “criar situações favoráveis para o livre exercício da atividade econômica”, “estabelecer os limites da autonomia das partes para defender o mais fraco” (Centesimus annus 15).
Paulo VI, por sua vez, deu ao princípio de subsidiariedade uma amplidão mundial: “...à luz do mesmo princípio (subsidiariedade) devem ser reguladas as relações entre Poderes Públicos das comunidades nacionais e os Poderes Públicos da comunidade mundial” (Populurum progressio 48). Isso significa afirmar o dever dos organismos internacionais de assistir os povos subdesenvolvidos. Nesse ponto, a subsidiariedade torna-se solidariedade, dentro das nações e entre as nações.
14 - A recusa da guerra
As guerras acontecidas nos últimos anos e a posição clara e insofismável do Papa João Paulo II contra esse meio de resolver os conflitos entre as nações recolocaram em evidência a necessidade da afirmação da paz, como dom de Deus e tarefa humana.
O CDSI (Compêndio de Doutrina Social da Igreja), recém publicado, põe em evidência o tema da guerra, quando dedica todo um capítulo A Promoção da Paz. Já o grito profético de Paulo VI na Assembléia das Nações Unidas, “Nunca mais a guerra!”, colocou em cheque todas as justificativas da guerra justa, da guerra preventiva ou similar. Pôs ao lado do princípio da legítima defesa o dever de se promover a paz, de se proteger os inocentes, de se buscar o desarmamento, de se condenar o terrorismo e evidenciou as medidas a serem tomadas para se obter a paz. De uma vez por todas mostrou que a guerra de agressão é intrinsecamente imoral.
Isso porque as guerras não acontecem por causa de um determinismo histórico inelutável. Elas acontecem por determinação dos chefes dos povos que, a serviço de interesses ou vaidades nacionais ou por causa de ideologias hegemônicas, provocam os conflitos. Às mais das vezes, os interesses econômicos ou políticos de grupos nacionais levam nações inteiras a conflitos justificados por campanhas publicitárias bem arquitetadas e manipuladas. Tudo em nome do abuso que se faz do princípio da justa guerra de defesa.
Fora o justo direito de se defender de uma injusta agressão, após o esgotamento de todos os meios possíveis para recuperar o direito violado de um povo e assim se evitar a violência da guerra, não há espaço para que uma guerra seja chamada de justa. Talvez mais do que justa, ela devesse ser chamada de “inevitável”, quando todo diálogo torna-se impossível e todos os meios de solução e persuasão foram usados sem se conseguir o objetivo de recuperar os direitos de quem os teve desrespeitado. Mesmo nesse caso, deve haver proporção entre os danos causados e os sofridos e que esses sejam duráveis, graves e certos. Que não se causem mais males do que os que se pretendem eliminar.
Por que todas essas condições? Pela razão simples e bastante da morte de tantos inocentes; da destruição da obra de gerações; da contaminação da natureza; do acirramento dos ódios e da negação de se dar uma possibilidade à paz. Simplesmente porque qualquer guerra é um flagelo, um massacre inútil, uma aventura sem retorno, a falência de todo autêntico humanismo, uma derrota da humanidade. Nada se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra (cf. CDSI 497). Não se trata de um pacifismo barato, mas da afirmação da paz como ideal.
Nessa altura, a Doutrina Social da Igreja não pode prescindir de sua inspiração maior, Jesus Cristo, nossa paz. Ele, o príncipe da paz (Is 9, 5), veio destruir, ampliando-se o falar de são Paulo, o muro de separação entre todos os povos (cf. Ef 2, 14-16). Ele nos deu sua paz como dom e tarefa (cf. Jo 14, 27) a ser construída pela justiça e pela caridade. Ao cristão resta defender a paz, ser bem-aventurado como construtor dela (cf. Mt 5, 9) e evitar a guerra.
15 - Engajar-se politicamente
A corrupção e a falta de ética de alguns políticos fazem com que muitas pessoas torçam o nariz quando se fala em política. No entanto a Doutrina Social da Igreja fala do dever do cristão leigo de se engajar politicamente.
Antes de tudo é preciso resgatar o significado primeiro de política, como “a ciência e a arte de governar a cidade - o estado”. Todo grupo humano na medida em que cresce e torna-se mais complexo carece de medidas sistemáticas que o levem a alcançar seus objetivos econômicos e sociais. Daí, a necessidade de uma política e ela não se faz sem políticos, sem pessoas que assumam suas responsabilidades de cidadãos e cidadãs, guiem e governem a polis.
Para o cristão, o fundamento de seu engajamento político será as orientações da lei natural, da ética cristã católica e da Doutrina Social da Igreja, frutos de uma longa tradição e reflexão. Nessa perspectiva, o bem comum será o objetivo final de toda e qualquer ação política, norteando as escolhas, as medidas a serem tomadas e as leis a serem votadas para regular a livre e democrática convivência humana e cidadã. É por isso que, para Paulo VI, “o cristão tem o dever de participar... na organização e na vida da sociedade política” (OA 24s).
O Magistério da Igreja, porém, não deixa de insistir que essa nobre missão deva ser realizada pelos leigos e não pelo clero. Entre outras razões, convém lembrar que a política em favor da nação e do povo passa pelos partidos políticos, e a Igreja, não se identificando nem se considerando, atualmente, representada por nenhum dos partidos existentes, se tivesse sua hierarquia envolvida na condução política, comprometer-se-ia com formas partidárias concretas, podendo condicionar ou induzir os fiéis a uma opção determinada, o que não seria justo.
O cristão deverá, segundo a Doutrina Social da Igreja, valorizar os regimes e partidos democráticos que em seus programas, entre outros fins, incluem a liberdade de religião como expressão de uma liberdade maior, a liberdade da pessoa humana. Todo totalitarismo deve ser afastado e não se deve deixar dominar por ideologias subreptícias que facilmente se insinuam no mundo político.
João Paulo II dirá que “para os fiéis leigos o compromisso político é uma expressão qualificada e exigente do compromisso cristão no serviço aos outros” (CDSI 565). Assim o leigo deverá participar ativamente dos debates políticos partidários e assumir suas responsabilidades de cristãos batizados, buscando alcançar o bem comum, a implantação da justiça social e econômica, a promoção do diálogo e da paz no horizonte da solidariedade, tudo isso tendo como inspiração o direito fundamental de participação, a subsidiariedade.
Nesse âmbito, o cristão leigo deve se preparar para o exercício dessa participação que não é fruto de improvisação. Fará parte de sua formação o conhecimento da Doutrina Social da Igreja como palavra oficial do Magistério e fruto de uma reflexão de milênios, onde a pessoa humana é posta em primeiro lugar por ter sido criada à imagem e semelhança do Deus criador.
16 - Mudança de costumes
A Doutrina Social da Igreja evidencia a realidade da pessoa humana como singularidade e como ser social.
A complexidade da realidade faz que não se possa ver a fonte dos males sociais simplesmente nos pecados sociais ou estruturais, mas também no pecado pessoal. Faz parte da nossa fé a afirmação de uma divisão interior presente na pessoa humana, que a acompanha durante toda a vida e contra a qual ela terá de lutar sempre para se aperfeiçoar. Ninguém escapa de uma incapacidade de amar Deus sobre todos as coisas e ao próximo como Deus nos ama. Essa limitação se multiplica na esfera social e estrutural. Em suma é a realidade do pecado original que se torna pessoal, social e estrutural. Aí está a raiz de todos os males sociais, políticos e econômicos. Não há um determinismo histórico ou social que leve às situações de injustiça vividas; o que existe na base de tudo são opções livres, embora não absolutas, de pessoas e sociedades.
Por isso a Doutrina Social da Igreja, além de propor caminhos de reestruturação da sociedade, também apela para a mudança de costumes e para o retorno aos valores espirituais fundamentais da pessoa e das sociedades. Faz-se mister também uma conversão pessoal, uma nova opção de vida que vai além da simples constatação dos erros da sociedade.
A encíclica Gaudium et spes nos indica o caminho da conversão, da mudança dos costumes e do retorno aos valores: “A ordem social e o seu progresso... devem desenvolver-se sem cessar, ter por base a verdade, construir-se sobre a justiça, ser animada pelo amor e encontrar na liberdade um equilíbrio sempre mais humano” (26). São esses os valores fundamentais do cristão que induzirão a novos costumes, atitudes e opções. Isso se alcançará mediante um processo formativo das pessoas e da sociedade.
O cristão deve, portanto, redescobrir e proclamar a verdade sobre a pessoa humana em alto e bom som diante do aniquilamento e manipulação do ser humano, afirmando a centralidade da pessoa. A Igreja como perita em humanidade não pode fugir dessa missão. Precisa também lutar pela justiça, sonho profético do qual Cristo era a esperança e seu mestre. Essa é uma justiça fundada na própria justiça de Deus que é fiel.
Ainda, de acordo com a Gaudium et spes, nós cristãos devemos buscar a ordem e o progresso social, vivendo o amor, como expressão e forma da misericórdia. Amor a todos, inclusive aos inimigos. Amor que vê no irmão o Cristo e dá sentido ao agir humano. E mais: espalhar a liberdade, dom de Cristo pelo Espírito que nos faz livre, redimidos e libertos que fomos de todas as escravidões e restaurados em nossa dignidade plena.
Isso resume o projeto da conversão dos costumes e a volta aos valores cristãos. No dizer do padre Dehon, nosso fundador, trata-se de “implantar o Reino do Coração de Jesus nas almas e nas sociedades”. Aliás, nossa nova série de artigos será justamente sobre o pensamento social de padre Dehon; seu olhar sobre a sociedade de seu tempo (1848-1925) nos trará luz para os dias de hoje, pois suas palavras sempre novas e válidas continuam a educar para o social a Igreja e a sociedade e a nós interpelar como cristãos.
* Artigo escrito pelo Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, scj, publicado na Revista Ir ao Povo, publicação mensal da Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus - DEHONIANOS (www.iraopovo.com.br). Pe. Carlos Alberto da Costa Silva é especialista em Doutrina Social da Igreja. Reside atualmente em João Pessoa, PB.