Para ti as trevas não são trevas e a noite se faz clara como o dia”. Essa palavra do salmo 139 é retomada pela Igreja latina no anúncio da Páscoa ( Exsultet ) e aparece em muitos poemas litúrgicos orientais para louvar a noite de vigília que Santo Agostinho chamava de “mãe de todas as vigílias da Igreja”. Hoje, podemos pensar que ela não é somente a mãe das vigílias cristãs, mas é também resumo e expressão de todas as vigílias da humanidade, especialmente, de muitos cultos noturnos, comuns à maioria das religiões e tradições espirituais. É mãe no sentido de que seus elementos (fogo, água, reunião ao redor da Palavra, refeição sagrada) são comuns a muitas religiões e alguns dos seus ritos são primordiais em uma espiritualidade comum a muitas tradições. É mãe no sentido de que esta vigília contém um espírito que pode nos ajudar na acolhida às religiões da natureza, no respeito aos mais diversos ritos e no amor a todos os caminhos que testemunham a passagem de Deus pela humanidade.
Para esperar e pedir que a escuridão se faça luz, muitos povos indígenas têm seu principal momento de espiritualidade em uma vigília de madrugada ao redor do fogo. Também nos séculos passados, os negros escravos só se sentiam um pouco mais livres da guarda de seus senhores quando estes iam dormir pela madrugada. Então, os negros, recolhidos na senzala, se reuniam em vigílias e entoavam os cânticos de sua dor para os deuses exilados da África. Até hoje, as festas (Xirês) do Candomblé são sempre à noite. Mais antigamente ainda, há mais de dois mil anos, no Oriente Médio, na noite da primeira lua da primavera, os pastores de ovelhas sacrificavam aos deuses da fertilidade um cordeiro e tingiam as portas de suas casas com o sangue da vítima para garantir proteção e afastar os maus espíritos. Os hebreus retomaram esse rito em memória do Deus que os chamou à libertação do Egito e reconheceram nele as divindades que os favoreciam com as páscoas da primavera do mundo e da vida deles.
Cada noite da Páscoa retoma todas essas memórias pessoais e coletivas. Cada Páscoa assume esse clamor de todos os povos por libertação e por luz. Proclama que Deus Amor é Alguém que está sempre passando (páscoa significa isso: passagem divina) e passando para libertar. Passou para libertar o povo hebreu da escravidão do Egito. O profeta Amós recorda que passou para libertar o povo etíope de Quis (Am 9). Hoje, passa nas caminhadas de libertação dos povos latino-americanos. Passa de diversas formas e com os mais diversos nomes e expressões de acordo com as culturas e as histórias de cada grupo humano.
Nós, cristãos, celebramos isso simbolizado em uma pessoa: Jesus de Nazaré, a quem reconhecemos como o Cristo (o Consagrado) de Deus, imagem para nós do ser humano novo, ressuscitado. Sua vida doada e sua morte solidária foram assumidos por Deus como princípio e critério de Páscoa para o mundo todo.
Os Evangelhos lidos na noite da Páscoa simbolizam isso. Mateus conta que, em uma madrugada de Páscoa, duas mulheres foram ver o sepulcro de Jesus e foram testemunhas de um fato impressionante. Houve um terremoto porque um anjo do Senhor desceu do céu e removeu a pedra do sepulcro. É a forma deste evangelho dizer que algo do que o próprio Jesus tinha anunciado como sinais do fim de um mundo (Mt 24) começou a acontecer naquela madrugada, antes do sol raiar. A ressurreição de Jesus é a madrugada do novo mundo possível pelo qual hoje grande parte da humanidade anseia e que nos fóruns sociais procuramos preparar. Na manhã do domingo da Ressurreição, as Igrejas costumam ler o relato do túmulo vazio e os primeiros testemunhos dos discípulos e discípulas segundo João (Jo 20,1-18). Como o primeiro homem e a primeira mulher no paraíso, este evangelho mostra o Senhor Ressuscitado e Maria como o novo casal deste mundo novo que começa.
Somos, então, na noite da Páscoa, convidados a contemplar os sinais dessa aurora nova do mundo, no cuidado com a natureza, criação ameaçada de tantas formas pelo mesmo pecado do mundo que provocou a cruz de Jesus. Somos convidados a testemunhar e participar da Páscoa libertadora que Deus inspira e dirige nos povos oprimidos do mundo atual.
Um teólogo luterano (Bonhoeffer) dizia que o Cristo ressuscitado é o Cristo em forma de comunidade. Depende de cada um de nós que nossa comunidade viva esta Páscoa como comunidade renovada e cuja vida é para os de fora e manifesta que Deus atua nos outros. Esse foi o mergulho que Jesus fez na realidade do seu mundo. Esse é o sentido do batismo (mergulho) que, em cada noite pascal, renovamos e revivemos. O Senhor ressuscitou realmente. Aleluia!
* Artigo escrito por Marcelo Barros, na Revista de Liturgia, edição março/abril 2008. Marcelo Barros é monge beneditino, autor de 29 livros, entre os quais “A vida se torna alianças (orar ecumenicamente os salmos).