Envelhecer com dignidade: um direito da pessoa idosa

A Bíblia está repleta de personagens intrigantes. Apenas para citar alguns exemplos, temos a mulher samaritana, cuja vida foi marcada pelo encontro com Jesus à beira do poço de Sicar, na região da Samaria (Jo 4, 1-30); Zaqueu, o cobrador de impostos (Lc 19, 1-9); Bartimeu, o cego (Mt 20, 29-34; Mc 10, 46-52 e Lc 18, 35-43); a hemorroíssa (Mt 9, 20-22; Mc 5, 25-34 e Lc 8, 40-48) e muitas outras figuras apaixonantes que encontraram em Jesus um novo significado para suas vidas.

Há, porém, uma personagem cuja história é particularmente cativante. Trata-se da profetisa de oitenta e quatro anos, chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Pouco foi escrito sobre ela. Sabe-se apenas que se casou bem jovem e que viveu com o marido sete anos apenas, depois ficou viúva e assim permaneceu até os oitenta e quatro anos. Lucas foi o único dos quatro evangelistas a citar sua presença e o fez em três breves versículos (Lc 2, 36-38).
Sua aparição acontece durante a visita de Maria e José ao Templo de Jerusalém, para cumprimento dos rituais da oblação do filho primogênito e da purificação da mãe (Ex 13, 1-16; Lv 12, 6-8). O relato narrado por Lucas principia falando sobre o encontro de Jesus e sua família com o velho Simeão, um homem justo e piedoso, a quem o Espírito Santo havia revelado que não morreria sem primeiro ver o Cristo. A entrevista de Ana com os pais do menino vem em seguida, encerrando o capítulo, e chega a parecer secundária dentro da narrativa apresentada. Porém, na verdade, lendo com bastante atenção o trecho de Lc 2, 36-38, vemos que a intenção do narrador foi exatamente torná-la conhecida dos leitores. Como dito, entre os evangelistas, Lucas foi o único a mencionar o nome da profetisa. E o fez com razão, diga-se de passagem, pois Ana é realmente uma figura apaixonante.

Na Bíblia, a pessoa que fala em nome de Deus é chamada de profeta. Antes do nascimento de Jesus, muitos profetas haviam ensinado ao povo a maneira correta de experienciar a fé no Deus Vivo, como Jeremias, Ezequiel, Isaías, Oséias e outros. Todos homens. Ao longo da história do povo de Israel, são pouquíssimas as aparições de mulheres profetisas. Lucas, porém, inclui a velha viúva nessa seleta classe. Deduz-se, então, por esses dados, que aquela mulher era mesmo especial e que o Senhor tinha grande admiração por ela, a ponto de fazê-la mediadora privilegiada de sua mensagem em determinada época.

Lucas é bastante específico quanto os traços físicos e biográficos da profetisa. O autor quer marcá-la vivamente na memória de todos. Por isso, nos vv. 36 e 37, ele condensa vários elementos pessoais (o nome, a genealogia, o estado civil, a idade e traços típicos da personalidade de Ana, como a disponibilidade para o serviço, a prática persistente do jejum e da oração), que são empregados para diferenciá-la das outras mulheres do seu tempo. Normalmente, uma pessoa de 84 anos é castigada pela dor e pela diminuição dos movimentos. Ana, porém, segundo Lucas, não se afastava do Templo. Jejuava e orava dia e noite. Revelava-se uma pessoa cheia de vitalidade e fé.

Como visto antes, Ana não se afastava do templo um só minuto, servindo a Deus diuturnamente, com jejuns e orações. Não se sabe se ela teve filhos, provavelmente não; tampouco há dados indicativos sobre a existência de parentes vivos ao tempo da viuvez. Embora Lucas não o diga expressamente, podemos supor que a convivência de Ana com os habitantes do lugar era bastante difícil. Basta recordar o “Instituto do Levirato” (do latim, levir = cunhado), em voga desde os Patriarcas, destinado a regulamentar a herança de um falecido que não tivesse deixado descendentes para recebê-la. Segundo esse costume, para evitar a dispersão da propriedade da terra por outra família, o irmão vivo, domiciliado na propriedade, deveria desposar a cunhada/viúva, para que o primogênito advindo dessa segunda união recebesse a herança e o nome do falecido, impedindo a dispersão do patrimônio da família e perpetuando o nome do morto (Dt 25,5-10). Curioso é que o homem estava sujeito a duro julgamento por parte dos anciãos caso recusasse a esposa do seu irmão falecido. A mulher, porém, não tinha escolha; era obrigada a aceitar o cunhado, sempre. Há, nos sinóticos, breve menção a tal costume (Mt 22,23-28; Mc 12,18-23 e Lc 20,27-33).

Em Levítico, encontramos outro exemplo da situação das viúvas na sociedade forjada pelo judaísmo antigo - a chamada “lei de santidade dos sacerdotes”, segundo a qual “aquele que é sumo sacerdote entre seus irmãos, sobre cuja cabeça foi derramado o óleo da unção, e que foi consagrado para vestir as vestes sagradas (…) tomará por esposa uma mulher na sua virgindade. Viúva, ou repudiada, ou desonrada, ou prostituta, destas não tomará”, pois assim “não profanará a sua descendência entre o seu povo” (Lv 21,10-15). Ou seja, pesavam sobre Ana, como viúva, as mesmas amarras sociais que se impunham à mulher desleal e impudica. Tais fatos, porém, ao invés de desmerecerem a figura da profetisa, parecem tê-la tornado ainda mais pujante na visão do evangelista. Afinal, não foi à-toa que Deus a escolhera para embalar nos braços o “Príncipe da Paz” (Is 9, 6).

Óbvio que há mais coisas para se falar sobre essa personagem. O próprio autor enfatiza, no prólogo do seu primeiro livro, haver “diligentemente investigado tudo desde o princípio” (Lc 1, 3), antes de compor a história dos acontecimentos mais importantes da vida de Jesus. Deve ter descoberto detalhes que, embora omitidos no texto, justificaram a presença de Ana entre as personalidades marcantes do Evangelho.

2 - ILUMINANDO O PRESENTE: VIVER A VELHICE COM ESPERANÇA [1]

Queiramos ou não, o Brasil passa por um processo de envelhecimento populacional. [2] A perspectiva para o século XXI é que, em 2025, o Brasil seja a sexta maior população de idosos no mundo, com aproximadamente 32 milhões de pessoas nesse grupo. [3] A Paraíba, por sua vez, tem, hoje, em números relativos, a terceira população mais idosa do país. São cerca de 391 mil idosos, o que representa 10,8% da população do Estado. [4]

Entre os idosos, as mulheres já são maioria. Estima-se que, em 2020, de cada 10 pessoas idosas no país, 6 serão mulheres. [5] É grande também o número de viúvas. Estas representam mais de ¼ das mulheres com idade entre 60 e 69 anos. [6]

Como garantir a essa população uma velhice digna?

Em 1Cr 29, 26-28 fala-se que Davi reinou quarenta anos sobre todo o Israel. Morreu numa boa velhice, cheio de dias, riquezas e honra. Antes, em Gen 25, 8, é dito que Abraão expirou, também em “boa velhice” e repleto de dias. Na Bíblia, a expressão “boa velhice” traduz como que uma benção ou recompensa para o sujeito que chega ao fim da existência “numa velhice feliz”. Pena que no presente envelhecer se tornou um drama para boa parte da população.

Segundo a pesquisa “Indicadores Sociais Municipais”, realizada pelo IBGE, a partir dos dados do Censo 2000, três em cada dez idosos praticamente sustentam toda a sua família. A maior parte possui renda mensal de até um salário mínimo. [7] Isso explica porque um em cada três aposentados permanece no mercado de trabalho, já que aposentadoria que recebem é insuficiente para manter um padrão de vida razoável. A maior parte da renda dos idosos provém da Previdência. [8] Um estudo recente realizado pela Previdência Social mostrou que ter um idoso na família ajuda a elevar a renda média mensal da casa. Em boa parte dos casos, a família assume a administração dos bens do idoso, fazendo com este perca sua autonomia e passe a ser controlado pelos familiares, tendo que justificar seus gastos e limitar suas despesas. [9]

Segundo a professora Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora científica do Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves/Fiocruz), estudos parciais feitos no país mostram que a maioria das queixas dos velhos é contra filhos, netos ou cônjuges. As denúncias enfatizam em primeiro lugar abusos econômicos (tentativas de apropriação dos bens do idoso ou a abandono material cometido contra ele), em segundo lugar, agressões físicas e em terceiro, recusa dos familiares em dar-lhes proteção. A maioria das violências físicas cometidas pelos filhos (homens) está associada ao alcoolismo: deles próprios ou dos pais idosos. [10]

A violência e os acidentes constituem na atualidade 3,5% dos óbitos de pessoas idosas, ocupando o sexto lugar na mortalidade, depois das doenças do aparelho circulatório, das neoplasias, das enfermidades respiratórias, digestivas e endócrinas. Por ano, morrem cerca de 13.000 idosos vítimas de acidentes e violências, o que representa uma média de 35 óbitos por dia, dos quais (66%) são de homens e (34%), de mulheres. No Brasil, há cerca de 93.000 idosos que se internam por ano por causa de quedas (53%), violências e agressões (27%) e acidentes de trânsito (20%). [11]

Os números aqui citados podem impressionar, no entanto, como enfatiza a professora Maria Cecília de Souza Minayo, “eles não expressam nem a quantidade, nem a intensidade e nem a diversidade das violências cometidas contra a pessoa idosa”.[12] No Brasil, as informações sobre doenças, lesões e traumas provocadas por causas violentas em idosos, afirma a professora, ainda são pouco consistentes. Pesquisadores chegam a estimar, inclusive, que 70% das lesões e traumas sofridos pelos velhos não comparecem às estatísticas. [13]

Em outro estudo, realizado pelo Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira, do Recife, ficou caracterizado que “a maioria dos casos de violência contra idosos deriva da auto-negligência ou é perpetrada por um membro da família, o que pode explicar porque as vítimas tendem a minimizar a gravidade da agressão e se mostrarem leais a seu agressor, freqüentemente negando-se a adotar medidas legais contra membros da família ou a discutir sobre esse assunto com terceiros. Elas preferem conviver com maus-tratos a abrir mão de um relacionamento pessoal em suas vidas”, afirmam os pesquisadores. [14]

Em janeiro deste ano, um caso de agressão chocou a população da capital paraibana. Um aposentado de 86 anos faleceu no Hospital Edson Ramalho, em João Pessoa, depois de ser mantido por seus familiares em cárcere privado, em seu apartamento. Populares denunciaram ao Ministério Público estadual que os próprios familiares estariam usando o dinheiro da vítima (que ganhava em torno de R$ 10 mil) para comprar casa, carro e moto. Até mesmo o apartamento em que o aposentado morava, avaliado em cerca de R$ 80 mil, chegou a ser “doado” a um dos sobrinhos. [15]

No Brasil, de acordo com a Lei da Lei nº. 10.741, de 2003 (Estatuto do Idoso), constitui crime “apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhe aplicação diversa da de sua finalidade” (art. 102), ou “reter o cartão magnético de conta bancária relativa a benefícios, proventos ou pensão do idoso, bem como qualquer outro documento com objetivo de assegurar recebimento ou ressarcimento da dívida” (art. 104).

Também é crime, punível com pena de até 5 anos de prisão, “induzir pessoa idosa sem discernimento de seus atos a outorgar procuração para fins de administração de bens ou deles dispor livremente” (art. 106); “coagir, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar procuração” (art. 107), ou mesmo “lavrar ato notarial que envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos, sem a devida representação” (art. 108).

Mas há também um outro tipo de violência (silenciosa) contra o idoso: a miséria. Existem 40,7 milhões de pessoas com mais de 60 anos sem-previdência, dos quais 16,8 milhões são mulheres. [16]

Estas pessoas estão excluídas de uma rede de proteção social que assegura a reposição da renda quando da perda da capacidade de trabalho. A situação é mais crítica entre as trabalhadoras domésticas, as que trabalham por conta-própria, as não remuneradas e as que trabalham para o próprio consumo. Em cada uma dessas categorias, a previdência não chega a 30% das mulheres. [17]

Mas o que esse discurso tem a ver com a narrativa lucana, afinal?

A resposta é bastante simples: a velhice não é apenas uma fase cronológica da vida. “O envelhecimento diz respeito diretamente à própria afirmação dos direitos humanos fundamentais. A velhice significa o próprio direito que cada ser humano tem de viver muito, mas, certamente, viver com dignidade”, lembra o pesquisador Paulo Roberto Barbosa Ramos. [18] Logo, a narrativa sobre a profetisa Ana nos remete ao tema da Campanha da Fraternidade deste ano, “Fraternidade e Defesa da Vida”, cujo lema é “Escolhe, pois, a vida”. O texto lucano tem a ver também com os novos rumos da Igreja na América Latina, a partir do Encontro de Aparecida, em 2007, no tocante à defesa intransigente da vida, esta que é «presente gratuito de Deus, dom e tarefa que devemos cuidar desde a concepção, em todas as suas etapas, até a morte natural, sem relativismos» (DA, 464).

Ana e Simeão envelheceram com um amor profundo pelas coisas de Deus. Os dois foram pessoas marcadas pela fé, pela retidão de caráter e o elevado senso de justiça. Ana, em particular, precisou enfrentar muitos desafios em sua vida, mas apesar dos entraves causados pela caducidade, não se fechou em torno de si, nem se deixou abater pela intolerância das outras pessoas. Foi uma mulher bem à frente do seu tempo, principalmente na maneira de encarar os acontecimentos históricos, tanto assim que se tornou profetisa.

E nós, como chegaremos à terceira idade? Será que ainda puros e com os sonhos intactos, apesar dos muitos sofrimentos e obstáculos impostos pelo mundo de hoje e com a mesma sede de Deus?

Deus nos conceda a bem-aventurança de uma velhice feliz, cheia de dias e com boa dose de lembranças agradáveis armazenadas no peito.

Equipe PASCOM.
________________________________________
NOTAS:

[1] As informações aqui reproduzidas contêm indicação de sua fonte original e, assim, seu uso não constitui violação aos direitos autorais dos seus proprietários.

[2] Segundo dados do IBGE, a proporção de idosos vem crescendo mais rapidamente que a proporção de crianças. Em 1980, existiam cerca de 16 idosos para cada 100 crianças; em 2000, essa relação praticamente dobrou, passando para quase 30 idosos por 100 crianças. A queda da taxa de fecundidade ainda é a principal responsável pela redução do número de crianças, mas a longevidade vem contribuindo progressivamente para o aumento de idosos na população. Um exemplo é o grupo das pessoas de 75 anos ou mais de idade que teve o maior crescimento relativo (49,3%) nos últimos dez anos, em relação ao total da população idosa” (Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios) Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/25072002pidoso.shtm.

[3] “Perfil do idoso atendido por um programa de saúde da família em Aparecida de Goiânia – GO”. Revista da UFG, Vol. 5, nº. 2, dez 2003, on line (www.proec.ufg.br)

[4] Notícia veiculada no Diário da Borborema, edição de 10 de junho de 2007.

[5] Fontes: Censo 2000 e Projeções 2000 – IBGE.

[6] Fonte: Tabulação Avançada do Censo Demográfico 2000 - IBGE

[7] MACHADO, Maria Alice Nelli. Políticas sociais avançam mais para idosos que para crianças. Será?. Disponível em: http://www.portaldoenvelhecimento.net/artigos/artigo2921.htm.

[8] Em 1999, 54,1% da renda de um  homem idoso provinha de aposentadoria, enquanto 35,6% era oriunda do seu próprio trabalho. No caso das mulheres, a aposentadoria e a pensão contribuíam com 77,6% do rendimento mensal (Perfil dos Idosos Responsáveis por Domicílios no Brasil - 2000, IBGE).

[9] PESSOA, Elisângela Maia. “Idosos: trabalho e aposentadoria”. Disponível em: http://www.reitoria.uri.br/~vivencias/Numero_004/artigos/area_trabalho/area_trabalho_01.htm

[10] MINAYO, Maria Cecília de Souza. “Violência contra Idosos”. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/cndi/eixos_tematicos.doc.

[11] MINAYO, Maria Cecília de Souza. “Violência contra Idosos”. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/cndi/eixos_tematicos.doc.

[12] MINAYO, Maria Cecília de Souza. “Violência contra Idosos”. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/cndi/eixos_tematicos.doc.

[13] MINAYO, Maria Cecília de Souza. “Violência contra Idosos”. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/cndi/eixos_tematicos.doc.

[14] Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, 6 (Supl 1): S43-S48, maio, 2006.

[15] Matéria publicada pelo Jornal da Paraíba, em 07.01.2007, de autoria da jornalista Ana Cláudia Papes.

[16] Fonte: PNAD (Pesquisa por Amostra de Domicílios), 2001, IBGE

[17] Fonte: PNAD (Pesquisa por Amostra de Domicílios), 2001, IBGE.

[18] RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Rede de proteção ao idoso. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/cndi/eixos_tematicos.doc