No dizer do povo, quem é Deus?

 

“Disse-lhe Felipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta…”

 

Jesus certa vez fez uma pergunta aos discípulos: “No dizer do povo, quem é o Filho do Homem?” (Mt 16, 13). Dentre os presentes, apenas Simão Pedro soube afirmar com clareza: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Simples, direto, verdadeiro. Mas, e se a pergunta fosse dirigida hoje a vocês – quem é Deus? – qual seria a resposta?

É bom que se advirta que a Igreja sempre se confrontou ao longo da sua história com respostas diferentes a esse respeito, algumas, inclusive, contrárias à fé cristã. Para citar de relance alguns exemplos, temos o maniqueísmo ou dualismo, o gnosticismo, o deísmo e o panteísmo. Muitas dessas correntes de pensamento foram consideradas heréticas pela Igreja Católica e alguns dos seus seguidores presos e condenados. O Catecismo da Igreja Católica traça de forma bastante sucinta um perfil de cada um desses movimentos. Vejamos:

I – MANIQUEÍSMO: doutrina fundada pelo persa Manes ou Mani, no século III, que defendia a idéia de um Universo criado e dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, de um lado, e o mal absoluto ou o Diabo, do outro. Para os seguidores de Manes, Deus era uma espécie de “força” do bem, sem nenhuma semelhança com o Deus vivo da História.

 II- GNOSTICISMO: corrente filosófico-religiosa que grassou no primeiro século da era comum, sendo muito combatida pela Igreja, sobretudo no Primeiro Concílio de Constantinopla, ano de 381, quando foi condenada como movimento herético. O gnosticismo caracterizava-se, sobretudo, pelo recusa em aceitar a institucionalização do cristianismo, por considerar que não havia necessidade de uma instituição eclesiástica – a Igreja – para entrar em contato com Deus. Cada fiel poderia comunicar-se diretamente com Ele pela gnose - conhecimento teórico a respeito de si e de Deus. Para os gnósticos, o sofrimento humano era conseqüência não do pecado (social, pessoal), mas da ignorância (falta de conhecimento/gnose), de sorte que a libertação do homem ocorria não na História, como se viu no Êxodo ou na própria Crucifixão, mas pelo processo interior de conhecimento. Por fim, cumpre acentuar a respeito dos gnósticos que essa corrente era adepta do ecletismo, vale dizer, a escolha, entre diversas religiões e cultos, das formas de conduta ou opinião que parecessem melhores, sem observância de uma linha rígida de pensamento. Algo muito parecido com o que se vê hoje em dia em algumas seitas.

 III – DEÍSMO: os deístas eram avessos à idéia da Revelação Divina. Deus existia, mas não se comunicava com os homens. Nós cristão, diversamente, cremos na ação divina que comunica aos homens os desígnios e as verdades sobre Deus, seja através da Palavra consignada nas Escrituras, seja na própria pessoa de Jesus, o Verbo Divino que se encarnou na História, a Revelação por Excelência de Deus (Jo 14, 9). Temos ainda o exemplo de Moisés, testemunha da revelação divina na sarça ardente (Ex 3, 1 e ss): seguindo as ordens de Javé, Moisés resgatou o povo do cativeiro no Egito. Antes dele, Abraão, já velho, deixou para trás uma vida de conforto e segurança, para pôr-se em caminhada em busca da Terra Prometida, crendo na revelação recebida quando já contava setenta e cinco anos (Gen 12, 5). Antes, ainda, houve Noé. Não há como esquecer também dos profetas, porta-vozes a quem Deus revelava insistentemente o seu zelo e amor pela humanidade, pessoas como Helder Câmara, o dom; Pedro Casaldaglia; Madre Tereza de Calcutá; Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado pela ditadura de direita do seu país no exato instante da consagração das espécies eucarísticas, e tantos outros mártires, como Irmã Adelaide, gaúcha, de 69 anos, morta em Eldorado do Carajás, no Pará, a paraibana Margarida Maria Alves e mais recentemente a missionária Irmã Dorothy, mortas todas elas a mando de donos de terra insatisfeitos com a Verdade revelada aos pequeninos. Como concordar com os deístas? E o que dizer dos panteístas, então?

 

IV – PANTEÍSMO: Para estes, Deus não é propriamente alguém, mas algo, a soma de tudo quanto existe (a palavra panteísmo dá a idéia de totalidade: pan, tudo, todas + teísmo, Deus). Enfim, Deus não é o Pai, o Abba, mas o ar que respiramos, a folha que cai, a árvore da qual foi extraída a matéria prima para feitura da folha de papel, a argila que compôs os elementos que dão substância aos edifícios. Deus está em tudo porque o todo é Deus. Percebam que coisa e Criador acabam se misturando, a ponto de o próprio Deus tornar-se também “coisa”, como o lápis, a cadeira, a escrivania, o computador etc.

Mas, se me permitem afirmar: nós mesmos, no dia-a-dia, de modo inconsciente, já esboçamos idéias parecidas com as que acabamos de expor. Por sorte, nesses casos, a culpa é mitigada pela chamada “dúvida involuntária”, ou seja, a hesitação em crer, a dificuldade de superar as objeções ligadas à fé, a ansiedade suscitada pela obscuridade da fé. Essa “dúvida”, explica o Catecismo, não constitui heresia, esta, sim, a negação pertinaz, pelo batizado, das verdades da fé católica (CIC 2088 e 2089). Mas, de qualquer modo, é a prova de que, também nós, em algum momento da vida, chegamos a relaxar e agimos como detratores da autêntica doutrina católica, como panteísta, deístas ou maniqueístas, ignorando que tais doutrinas conflitam com a nossa crença no Deus Vivo e no Nazareno Ressuscitado. Eu mesmo já afirmei, não sei exatamente quantas vezes, que Deus estava presente em tudo quanto existe. De fato, Ele está presente, mas não do modo como os panteístas afirmam. As criaturas, todas elas, trazem em si certa semelhança com Deus, muito particularmente o homem, mas Deus, infalivelmente, transcende a toda criatura. É o que ensina o Catecismo, nos nºs. 41 e 42. O mundo material se descortina aos nossos olhos como expressão da obra laboriosa do Criador. Colhemos as “provas da existência de Deus” nas coisas criadas, nelas encontramos as “vias” de acesso ao conhecimento de Deus (CIC 31), de forma que não se pode concluir que a Terra, os planetas, o sistema solar, a via-láctea inteira equivalem a Deus. O problema, talvez, seja o modo como empregamos, na maioria dos casos, o vocativo TODO, pois ele nos remete à idéia da divindade como algo completamente abstrato, sem forma. Brincamos com a imagem de Deus como um pintor brinca com suas telas.

A Igreja ensina que verdadeiramente Deus é uma PESSOA (CIC 198), não uma energia, uma força do bem completamente destituída de atributos morais e que poderia ou não haver influído na criação do Universo. Não, Ele é pessoa mesmo. Não de carne e osso, lógico. Mas é o Deus-Pai-Mãe-Pessoa, cujo sopro nos trouxe à vida; Criador e não criatura, Sujeito e não objeto, anterior a tudo. Na verdade, é a primeira PESSOA da Santíssima Trindade. Lá em Gen 3, 8 se diz que Deus caminhava na brisa da tarde e que seus passos eram ouvidos por Adão e Eva. Percebam, são atributos de alguém que acompanha os filhos de perto. Um Deus misericordioso, acima de tudo. óbvio, não se trata aqui de dar à divindade características humanas (antropomorfismo, outro desvio da fé), mas de reconhecer a infinita bondade de Deus e a capacidade de perdoar os erros humanos. Precisamos entender as coisas de modo coerente. A quem interessaria um Deus obscuro, vago, esfumaçado, sem preocupações com a ética, a justiça, a misericórdia e o perdão? Certamente àqueles que usam a religião para consecução de fins escusos, para o mercantilismo religioso ou como justificativa para a exploração do homem pelo homem.

Talvez por isso a Igreja insista para que busquemos incessantemente purificar nossa linguagem daquilo que possui de limitado, ingênuo, imperfeito, para não confundirmos Deus com as nossas representações/quimeras humanas (CIC 42). Não nos esqueçamos que, ao falar de Deus, nossa linguagem permanece sempre “aquém do Mistério”.

Enfim, é importante ter na memória aquilo que Jesus disse a Pedro no seguimento da narrativa destacada no início, relatada pelo evangelista Mateus: “Bem-aventurado és tu, Simão, porque não foi carne e sangue que te revelou isto, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16, 17). Ou seja, Deus mesmo se revela ao homem. A resposta à interrogação “Quem é Deus?” nos é dada diretamente por Ele. “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó” (Ex 3, 6). “Eu sou o Senhor que vos tirou da escravidão do Egito para ser o vosso Deus” (Lv 11, 45). Só Deus conhece Deus por inteiro (CIC 152). Escutemos, pois, com mais atenção, a voz do nosso Deus-Abbá. Afinal, ele está sempre perto de nós e não cessa de atrair o homem a si (CIC 27).

 

Equipe PASCOM