Final de tarde. José seguia em seu veículo pela avenida movimentada quando o sinal vermelho estancou a longa fila de carros à sua frente. Aquele tinha sido um dia atribulado, cheio de compromissos importantes e reuniões demoradas. Seria bom poder chegar logo em casa e relaxar, de preferência diante da tevê, vendo seus programas prediletos. Talvez devesse tirar férias, viajar, curtir a vida. O corpo cansado e a mente atolada em pensamentos eram sinais claros de que chegara o momento de aproveitar os louros do seu sucesso profissional: era um sujeito bem sucedido, fazia jus a um bom descanso. Seja como for, cuidaria disso mais tarde. Por ora, era preciso vencer o congestionamento: almas, pés e pedais aflitos. Loucura de cidade. Resignado, nosso personagem afrouxou o cinto de segurança, abaixou os vidros e sintonizou o rádio na estação de costume. Sentiu um vento calmo invadir o interior do veículo, trazendo o aroma frio do fim de tarde. Sentiu-se relaxado. Estava a poucas quadras de casa, não demoraria a chegar. Em pé, na calçada ao lado, próximo ao cruzamento, havia um homem sujo e mal vestido, esperando para atravessar a avenida. José observou com olhar aborrecido o sujeito. Um morador de rua, certamente. Do lado oposto, havia um terreno enorme e uma antiga construção abandonada, sem nenhuma cerca de proteção. O lugar havia abrigado uma escola, talvez uma das primeiras escolas da cidade. José fez os cálculos: tantos metros quadrados de área nobre, a “x“ reais, é igual a... O dono seria certamente um rico abastado despreocupado com o futuro ou, ao contrário, um sujeito incapaz de cuidar do próprio patrimônio. Quanta coisa poderia ser erguida naquele lugar: um prédio de apartamentos, por exemplo, um hotel, um shopping... Enquanto imaginava essas coisas, José viu o mendigo atravessar a pista de rolamento e abrigar-se feito bicho nas ruínas da construção abandonada. Uma cena triste, sem dúvida. Mendigo, asfalto, semáforo... Afinal, o que esses símbolos revelam para o homem moderno? Logo que o sinal abriu, José saiu em disparada: não estava disposto a perder seu tempo com reflexões de fundo sociológico ou político sobre prédios desabitados ou moradores sem teto. Queria apenas voltar para seu castelo, seu lar. Antes de partir, porém, aumentou o volume do rádio. Conhecia bem a canção que tocava no seu “player” de última geração. Naquele instante, embalado pela música, José sentiu-se perpassado por uma indescritível sensação de poder. Sentiu-se um privilegiado pelo fato de possuir uma bela família, ter um emprego estável e poder dirigir a 100 por hora seu carro do ano. Preocupar-se com o quê mais? Afinal, não é para isso que o homem batalha todos os dias, para alimentar-se com a fadiga do próprio trabalho? “Jogue suas mãos para o céu. E agradeça se acaso tiver alguém que você gostaria que estivesse sempre com você. Na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê”.
Esquiva-se do sonho o pobre menino que teme a árdua palmada paterna.
Palmada árdua, não pela dor, mas pela vergonha de contrariar um pai que, nos meandros do super-eu, institui-se protótipo absoluto do ser.
Quantos pais, quantos ais, quantos sem.
E assim tornamos Deus. Um deus meu e um deus seu.
Mas, se Deus queremos todos ser, sobrará espaço para um que seja mesmo?
Com quantas idéias se faz um deus?
Com quantas palmadas se educa um menino?
Com quantos meninos se faz um futuro?
Melhoranças pra todos!
Somos mitos e mitológicos por essência. Uma veia poética esconde-se nas entranhas pontuais de cada ser; ela nos conduz, qual cavalo alado, aos mais distantes e atraentes delírios. Não há problema, quiçá em nossos delírios encontremos o que buscamos. Melhoranças!!
Sob as telhas gastas da latada onde esconde-se do sol a boa e velha prudência paira um inquietante mágua. Que motivo terá levado ao abandono pelos seus da velha e caducante hóspede? Está démodé e não mais, como outrora, a consideram essencial ao bom julgar e agir. Somam-se a ela, em uma solidariedade mórbida e anônima, dezenas de outras e outros que, esquecidos e abandonados, vagam - como diz Sinézio - em busca de um chão que sirva-lhes de cova, mas nem isso... Então! Danem-se e DANAM-SE!! - com minúsculas e MAIÚSCULAS - os que abortaram seus sonhos e suas vidas,e que, inconformadamente inconformados, assumiram a missão de praguejadores.
Que Pastor? Que caminho? Que inquietos?
Uma graça!!
Se passamos de inquietos a inquietantes, conseguimos!!!
Viva!!!!!!!
A poesia seduz, cativa, assusta, esconde, equivoca, revolta. Não tenho encontrado poesias, mas resmungos - os meus os nossos e os vossos. De além-mar.
Um coração sineziano reclama vida! solidarizo-me com o meu velho.
Melhoranças pra ti!
quanta rasgação de seda, aqui virou o clube do bolinha, bem que a velha máxima diz que os \"iguais se aturam\"
Caro Jaramataia Pontual,
você tem que visitar mais vezes esse site. Seus textos são maravilhosos, bastante criativos e cheios de uma poesia que encanta, tanto quanto os de Nicodemos, Flertando Sofia e tantos outros.
Quantas revelações poeticas já se revelaram neste site. Com certeza, concordo com você, daria um belo livro.
Pelas veias doces da poesia filosófica, como intitula Chiquinho de Adelaide, constrói-se um itinerário reflexivo que esconde e amostra ao mesmo tempo. A impressionante capacidade e a grandeza das crônicas poéticas e narrativas de Nicodemos, brindadas pela suavidade das palavras de Flertando com Sofia, dentre outros, me fazem pensar num livro que pudesse reunir tantas pérolas que por aqui passaram. Meu desejo ganha fôlego ao saber que tais pérolas foram guardadas com carinho pelos meus queridos inquietos; prova disso é o presente antológico que nos tem sido dado nesses últimos dias. Tomando uma cachaça com Sinézio esses dias, conversamos longamente sobre tudo isso... viajamos bastante no fantástico mundo de Bob.
Saudações inquietas.
Sinézio Melhorança ()
... sobre o fogão de lenha um arame entirnado, sobre ele tripas resequidas da última criação morta para estancar a falta de mistura. Um estalo, pronto! um taco de tripa estava pra ser posto sobre a chapa quente que acomodava as panelas de barro. Bastava um esquente... entre os dedos, sob os sucessivos sopros, o taco era preparado para o deleite.
... menino! Cresceu e cresceu. Sonhou, apostou e perdeu, deu cabra ao invés de avestruz. Não faz mal, amanhã, na extração das onze e meia, ele vai jogar louva-a-deus, dizem que é o último que morre.
Ps.: Homenagem ao meu querido Nicodemos, um culto poeta da esperança.